Atrio

O Senhor de Si

Numa das últimas páginas deste livro podemos aceder à “tábua do poemas”, um índice com os títulos dos 21 poemas, que foram escritos no período compreendido entre os finais de 1990 (Outubro) e inícios de 1991 (Abril).

Na leitura dos títulos é perceptível a carga pessoal e intimista dos poemas, denotando-se um possível percurso de crescimento pessoal, marcado pela presença e memórias das suas origens.

Mas seguindo a curiosidade provocada pela leitura inicial da “Tábua de Versos” mergulha-se no texto poético do autor, que neste livro tem uma marca claramente autobiográfica:

*   A irmã Adelaide Couto Viana a quem é dedicada a obra,…

*   as memórias do seu nascimento na casa que “oscilou como um barco no mar/…/ E, entre as rezas e ais, comecei a chorar. (p.7),

*   as memórias da infância,…

*   … as gotas de sangue, que marcam o desaparecimento de familiares… a primeira quando tinha cinco anos (Avô),… um amigo do Liceu (Trancredo, p.14)

Pelo Coração das Coisas

A poesia de”Pelo Coração das Coisas” faz-se com a busca das palavras imprescindíveis, das palavras com pulsações próprias (em rumores de “sangue” e de “fogo”), “que a prumo adormecem/ pela comoção da luz verde e exacta/ como chama que se ateia na súbita aparição do verso”. E é com elas, na raíz da voz, que Fátima Meireles parte para uma nova caminhada poética como uma criança descalça. A sua poesia aborda a “infância”, o “amor”, a “vida”, a “solidão”, a “primavera”, a “noite”, a “paisagem” de “rios” e de “peixes”, de “margens” e de “árvores”, de “cordas” e de “barcos”, as coisas concretas e abstractas, o real e o irreal, mas é o tempo que se afirma e destaca no seu universo temático, “o tempo e a dança/ pelo outro tempo da émória.” São os retratos que emergem das sombras para remexer com a vida, com os sonhos, com as emoções, na claridade esplendorosa da poesia nostálgica, dos versos da dor ou da alegria, na evocação lírica dos “homens” que “esmagam as uvas no lagar”, das mulheres que “bordam em toalhas de linho/ delicadas flores”, das “crianças” que “adormecem dentro dos seus olhos”, da “casa cheia de candeias/ luz onde me abandono À saudade/ e o moinho onde a água caía como rosas”. Um mundo de lembranças e de afectos, um tempo revivido: “Era a idade em que ia passear contigo pelos campos/ (eu corria à tua frente)/ enquanto me falavas das árvores que plantavas e vias crescer/ e das rosas cor de sangue que a mãe tinha no jardim/ eu voava sobre a terra a ouvir-te ao cimo da êxtase/ a bboina à feição do teu rosto enfeitado de rugas)/ e os teus olhos submersos no próprio ar que respiravas/ tu ardias de amor pelas coisas/ ao princípio da noite vinhas sentar-te comigo a contar as estrelas”. O que se perscruta e se sente nestes versos é o encanto de uma ternura luminosa e sublime, o som e o silêncio do fazer poético. Assim vibram outros textos, dedicados a gente da arte e da literatura, desde Cesariny,”poeta/sol que arde e não se extingue/ e pelo enigma da vida olhas a pomba de cal”, a Eugénio de Andrade: “Deixa-te estar assim/ junto à janela/ esquecido a olhar os cedros entre a chuva”. Ou a Picasso: “Há seios verdes no arco de um corpo/ sobre um espelho quebrado”.

Luís Dantas