Essas Criaturas de Deus
Esta coletânea de contos inicia-se com uma dedicatória aos seus filhos, Sandra e Fernando José.
Segue-se uma nota introdutória de Francisco Pitta, onde se salienta o valor dos temas, a recriação de cenas e personagens, a descrição do espaço assim como o vocabulário sugestivo e a musicalidade do discurso.
Esta coletânea é composta por quatro contos: “Contrabando”, “Fogos Fátuos”, “Já não há Lobos na Serra” e “Essas Criaturas de Deus”, que também serve de título à obra. Cada conto é antecedido de uma epígrafe, apontando para o seu tema.
“Contrabando” inicia-se com uma descrição do espaço minhoto e rural, salientando-se a “latada prenhe de uvas” onde os homens se juntavam, de Verão e de Inverno, para jogar às cartas e relembrar os árduos e velhos tempos. É neste cenário de final de tarde, que se alarga até às doze badaladas, onde decorre a acção. Manel da Zira, Luís da Berta, Raimundo Azeiteiro, Aníbal Coxo, Salgueirinho, Armando do Casal e o sr. Veiga, regedor vitalício, juntam-se na tasca do Zé da Loja e comentam a atitude dos “rapazes” que se dedicavam a trabalhos mais rentáveis e menos árduos. Estes trabalhos resumiam-se ao contrabando de café com o outro lado do rio, com os espanhóis. Alguns destes homens consideravam estes jovens “madraços”, não querendo trabalhar no duro,”nem querem queimar a pele nem criar calos nas mãos ou comer buchas de pão com uma manada de azeitonas”. Outros consideravam-nos destemidos, “aventureiros” e capazes de procurar um “bom lucro”. Cada um deles dá a sua opinião à medida que o tempo passa. Cada um vai dando a sua opinião e “deitando achas para a fogueira”. O tempo também vai passando e aproxima-se a meia-noite. De repente ouvem-se vozes e ressoaram pés a bater. De súbito, a aldeia acordou e aqueles homens juntos na tasca do Zé da Loja concordaram que havia “coisa grossa!”. Os rapazes foram apanhados pelos carabineiros: fugiram… e um foi atingido, permanecendo o “cadáver meio afundado no lodo” do canavial. O grupo apressou-se em direcção ao rio. O sr. Veiga “mantinha-se à frente” para tomar conta da ocorrência. Os candeeiros aproximaram-se e voltou-se o cadáver. Neste momento, “a teoria pedagógica de um educador que se julgava insuperável” desmorona-se. Este educador é o sr. Veiga e o rapaz atingido é o Carlos, filho do sr. Veiga.
À semelhança do conto anterior, também este possui uma epígrafe, neste caso de Unamuno – “Yo no creo en brujas,/Pero que las hay, las hay!”. Envolta num ambiente soturno, as “coisas” apareciam “à última badalada da meia noite”, andando à roda dos muros sem proferir uma palavra, segundo o tio Chico Gameiro, que perfazia noventa anos. Segundo este, em noite de lua cheia, ao soar as doze badaladas surgia a procissão dos mortos junto ao portão do cemitério. O seu amigo Arcanjo Cebola morava do outro lado da mata e percorria aquele local ermo e escuro para chegar a casa. Um dia, ele viu a procissão dos mortos e não chegou a casa, aparecendo estendido na “estradinha do cemitério”, deitado de costas e com marcas de quem tivera apanhado um bofetão. Foi esta história que o tio Gameiro contou aos rapazes e moçoilas casadoiras, na taberna do Quim Adegas. Estes, ora para mostrarem a sua valentia perante as moças ora para comprovarem a história do tio Gameiro, marcaram dia e refizeram-na. “O promotor da emboscada”, Luís Enguia, “o sócio principal por via dos proventos”, Berto da Mira, e Domingos Barrote, “arrastado na corrente”, percorreram o caminho e chegaram ao cemitério perto da meia noite, apenas esperando o bater das doze badaladas. Os três permaneceram no local, apesar do receio já manifestado entre palavras, mas tinham que provar a sua valentia e demonstrar que a procissão dos mortos não passava de fruto da imaginação, de uma “parvoíce pegada”. O Enguia, “varre-feiras de nome firmado” e o “promotor da emboscada” colocou-se em frente ao portão do cemitério, com as mãos nos bolsos. Enquanto Domingos Barrote convidava o Berto da Mira a ir embora, o Enguia caía de costas. Num movimento brusco levantou-se e fugiu daquele lugar, deixando os outros dois estupefactos. Pensavam que o Enguia estava a pregar mais uma das suas partidas. O facto é que este não surgiu do meio das veredas e, mais tarde, encontraram-no no centro da aldeia, “sentado de costas apoiadas num candeeiro”, sem entender o que se tinha passado. Aliás, nenhum dos três tinha percebido o que acontecera: o facto é que o Enguia tinha apanhado um estalo, à semelhança do Arcanjo Cebola, e culpava os amigos. Então perceberam que “os traços indeléveis impressos no rosto do Luís Enguia, a não ser que tivessem uma explicação ainda mais miranbolante, testemunhavam que tinham estado muito perto daquilo que o tio Chico Gameiro se fartava de citar e o Arcanjo Cebola vira sessenta anos antes de morrer”.
Este pequeno conto apresenta uma particularidade, pois as personagens não têm nome. “Já não há lobos na serra” possui número reduzido de personagens: o avô e o seu neto. O avô, que surge somente no início do conto, transmite todos os ensinamentos na arte de pastorear ao seu neto, seu sucessor.
O conto relata-nos o primeiro dia de pastoreio do pequeno rapaz, desde o momento em que o rebanho se juntou no “pelourinho cruciforme plantado no centro” de Pedreira de Cima até chegar à serra. A missão do pequeno rapaz era pastar o rebanho colectivo – “coisa de trezentas cabeças” – com a ajuda do Piloto, o cão. Refira-se o facto de só o cão e uma pequena cabrita – “Pinta” – possuírem nome.
Para este primeiro dia, o aprendiz teve a ajuda do mestre, seu avô, que o acompanhou até à “carvalheira do Brasileiro”. A partir daqui, o rapaz estava sozinho. O pequeno pastor estava um pouco receoso, ora por medo ora por receio de perder algum animal ou por receio de se enganar. O velho pastor incentivava-o, referindo o seu passado de pastor e os seus ensinamentos (“Ensinei-te tudo e levei-te tantas vezes à serra que sabes de cor os abrigos e os pastos”). Ainda salientava que a serra já não é como era, pois metade estava queimada, o resto era plaino e “já não havia lobos na serra”. Metaforicamente, estes surgiram ao pastorzinho. Depois da subida fatigante, o pequeno pastor sentou-se para descansar e eis que surge serra acima um carro vermelho e pára, forçosamente, perto do rapaz.
Inicialmente, pensa que são turistas que vêm ver a serra, tirar fotografias. Estes cinco ocupantes do carro querem comprar um cabrito e oferecem dinheiro ao pastorzinho que, apenas, consegue referir que não são para vender. Entretanto, os cinco espalharam-se no meio do rebanho e levaram um cabritinho. O pequeno pastor ficou caído no chão e o carro desceu serra abaixo. Levanta-se e vê que no final da vereda crepita ferro retorcido. “Não há gente caída nem sinal da “Pinta”. De repente, ouve um balido tímido. Era a “Pinta” que se encontrava caída no meio das tojeiras, com uma perna partida. O rapaz corre na sua direcção, tira-a dali e afasta-se daquele local, mas deixa debaixo de uma pedra as notas que os ocupantes do carro lhe haviam dado.
Segue-se o último conto que dá nome à obra – “Essas criaturas de Deus”. Este conto é o mais extenso e está dividido em pequenas partes, uma espécie de capítulos, na qual se entrecruzam as histórias do senhor Zuzarte e do “pedinte-pobrezinho-jorge”. A maior extensão do conto é ocupada com o convite do senhor Zuzarte ao Barata para a festa de Carnaval, no “Executivo’s”, a preparação para a dita festa de Carnaval, a festa e a eleição do rei e da rainha e o pós-festa. Depois de recuperar da referida festa de Carnaval o senhor Zuzarte e sua esposa, Dona Antonieta, partem rumo à “vilória”, à casa de campo. Aqui assistiram à procissão do Senhor dos Passos e depararam-se com a presença indesejada do mendigo, que discriminaram. Neste conto estão patentes duas condições sociais do homem: o rico, que ostenta a sua vaidade, ostentação e recriminação social e o pobre, que se resigna à sua situação social.