Prefácio
“Os factores determinantes da cultura de um povo ficam normalmente guardados nas obras de civilização que lega à posteridade de variadas formas. Na pintura, na música, no cinema, na literatura, na engenharia, na escultura e na arquitectura imortalizam-se as formas de vida, os valores, os bens e a organização social dos próprios de épocas específicas da sua história. As artes constituem o lugar eloquente onde a cultura se diz e de certa forma se pereniza, como são também o espelho onde a mão de quem recebe deixa a marca do seu respeito ou do seu desleixo.
Chama-se habitualmente “património” pelo facto de instigar à viagem para a terra dos “patres”, ou das origens mais próximas ou mais afastadas da actualidade. Aí estão as marcas dos materiais, das técnicas, da instrumentação disponível, das formas, do imaginário, com as suas regras estéticas repletas de propostas e de interditos. O património constitui o lugar onde os pais da actualidade escreveram o seu livro, individual ou colectivo, e o deixaram em aberto à contemplação hermenêutica das gerações sucessivas. Partitura, desenho ou livro, ponte, torre ou arranha-céus, película, fotografia ou CD… são textos em diversos códigos e que entregam à comunidade actual a riqueza das culturas de que fazem a narração.
Lugares da memória cultural, estes documentos da civilização, na sua diversidade, tornam possível um passeio simbólico pelas ruas do tempo que os contextualizam, ouvindo as gravações que de forma rica apresentam aos turistas: gravações de modelos, de normas sociais, de riqueza técnica e de matéria prima, de contactos interculturais, de mobilidade e de imitação, de aprendizagens e de mestres, de escolas e de hegemonias.
Como as bibliotecas, também os monumentos são livros vivos, abertos ao tempo e que o desafiam, entregando a cada geração o dever da preservação e da sabedoria, já que o sábio nasce na contemplação serena daquilo que o precede. Se a monumentalidade de uma cultura inscreve sabedorias acumuladas ao longo de muitas gerações, mesmo de séculos, é também na autêntica sabedoria que aquele se preserva, quando o investigador trata os seus modelos como o artista os seus moldes ou como o escritor os seus códigos.
Muitas vezes se fizeram por entre o verde variado do Alto Minho, percorrendo com paixão montes e vales, assobiando nas margens dos rios e dos regatos, subindo encostas ao cantar da madrugada ou abrindo clareiras entre os arvoredos à procura de um penedo encantado, de uma marca pré-histórica, de uma ermida envolvida em sinais pré-cristãos ou de um campanário que assinala a população dispersa e em êxodo.
Muitos estudiosos legaram às gerações do presente os textos bucólicos de uma natureza apaixonante, os poemas nostálgicos de mouras encantadas ou de sereias surpreendidas a bailar com as ondas, as canções de amor nos caminhos das romarias ou os contos épicos de salvaguarda de uma identidade multissecular. Outros deixaram cantar a cultura nas redondilhas e nos viras, nos cancioneiros e nas cantigas ao desafio. Outros desenharam as paisagens, os moinhos e as ondas, o baile dos regatos, as azenhas, as eiras e os espigueiros. Outros fizeram a viagem pelo Alto Minho com cadernos e lápis, gravando no papel, com o cuidado conjugado do sábio e do artista, os pormenores de tudo quanto a história passada deixou aqui ficar.
O Padre Dr. Lourenço Alves é o exímio cultor desta arte de deixar escrever os sinos da Torre, as almofadas das janelas, o lajedo do adro, os caixotões de um tecto, as sanefas e os azulejos do interior de uma ermida. Sabe, ao longo dos seus passeios, emprestar o lápis à fachada da igreja neoclássica, medir no pormenor a capela de traço barroco ou emprestar algumas sílabas à povoação perdida no monte que se bate com o deserto das suas gentes. Encontra motivo de interesse nos dados das “Inquirições”, tira o pó dos alfarrábios de um qualquer arquivo paroquial e empresta a sua voz de mestre à cornija de um templo, à escadaria de um velho campanário ou ao som rouco do bronze rachado.
No I volume da sua obra apresentou o património do Alto Minho na sua versão românica e gótica. Neste II volume – “O Barroco e Neoclássico” – deixa falar os séculos mais próximos, XVIII a XX, inscritos em 91 igrejas e capelas dos seus diferentes concelhos.
ARCOS – 16
CAMINHA – 24
MELGAÇO – 06
MONÇÃO – 13
PAREDES DE COURA – 05
PONTE DA BARCA – 02
PONTE DE LIMA – 09
VALENÇA – 07
VIANA DO CASTELO – 09
TOTAL – 91
A viagem a fazer é repleta de encontros, pois conduz (quase de forma obrigatória) aos três planos de qualquer um destes monumentos: o etimológico, sem deixar na penumbra a origem; o histórico, sem esquecer a trajectória dos seus actores (a demografia); e o artístico, no cuidado esmerado de pormenores de planta, de estilo e de inventário exaustivo de imagens, alfaias e mesmo do enquadramento ecológico que dá vida a qualquer quadro.
O Padre Dr. Lourenço Alves habituou-nos a olhar para as igrejas e capelas desta terra minhota como quem lê com estima as páginas da sua própria história. Daí que nenhum minhoto se dispensa da leitura desta obra, já que muitos a consultarão no intuito de saber dialogar com a cultura que tal património encerra. Esta obra é assim o sinal inequívoco do amor do autor pela terra que o viu nascer e o lugar obrigatório de quantos se prezam de ter na alma o cheiro da amora no silvado ou o perfume das flores anunciando a Primavera.
José de Silva Lima
Janeiro 2000,
Director da ESTCH do Instituto Católico
Viana do Castelo”
Excertos
“O Barroco no Alto Minho
O Alto Minho, reconhecido, desde sempre, como uma região pobre e abandonada pelo poder político, foi palco deste surto de construção barroca, tanto na arquitectura religiosa como na civil e militar.
Numa primeira fase, surgem-nos igrejas rurais, quase todas muito pobres, datadas da segunda metade do séc. XVII e da primeira do séc. XVIII, ainda muito entrosadas nos moldes renascentistas. São plantas simples de uma só nave ligada à capela-mor por um arco de meia volta – o arco cruzeiro. O altar-mor que, primitivamente, teria sido barroco, tipo nacional, foi substituído, há muito tempo, por outro neoclássico, simples e sem grande esforço artístico.
No exterior, salienta-se uma porta rectangular, com padieira levemente encurvada, uma cornija esquemática sobre a porta, um óculo redondo ou polilobado, a meio do frontispício, o remate em frontão triangular, com uma cruz simples no vértice, apoiada numa base barroca. Nos cantos, há pirâmides simples ou emboladas e as cornijas são côncavo-convexas, que nos contratos de construção eram apelidadas de papo-de-rola.
Numa segunda fase, além dos fiéis das paróquias, já intervêm outros encomendadores, quer de ordens religiosas, quer de irmandades das Misericórdias ou até mesmo de emigrantes brasileiros. Os primeiros substituíram as suas igrejas velhas pelo novo figurino; os emigrantes brasileiros, de torna viagem, com os bolsos a abarrotar de dinheiro, talvez fruto do mercado negro do ouro, traziam consigo desenhos ou pagelas, a fim de construírem na sua terra, uma igreja ou uma capela, isolada ou anexa a um solar, para saldar tantas dívidas morais contraídas nesses negócios escuros…
Foram as irmandades das Misericórdias que remodelaram as suas igrejas de Viana, Caminha, Cerveira, Monção, Arcos de Valdevez, Ponte da Barca e Ponte de Lima, dotando-as de belas talhas douradas. Foram as confrarias mais importantes, como a da S.ra da Agonia em Viana do Castelo, a do Espírito Santo de Paredes de Coura, a do Senhor dos Mareantes de Caminha, a da S.ra da Peneda que, a um templo já neoclássico, montaram à volta um cenário barroco, a do Senhor do Socorro na Labruja, a do Espírito Santo em Arcos de Valdevez, etc., que restauraram e construíram de novo igrejas cheias de beleza, umas ainda dentro da temática maneirista, outras já vincadamente barrocas, quer no recheio interior, quer nas formas exteriores. As portas com o dintel arqueado, ostentam uma guarnição de linhas quebradas muito ao gosto bracarense. Sobre a porta, desenha-se um frontão reduzido, que desenvolve em volutas fragmentadas. Sobre um janelão de contextura semelhante à da porta, dispõe-se um remate em forma de cortina fragmentada, ou em volutas enroladas, assumindo as formas mais caprichosas. Alguns templos mais ricos envolvem a fachada com duas torres também barrocas. Algumas ainda conservam no interior talhas preciosas.
Algumas igrejas paroquiais, sobretudo nas vilas, foram também construídas ou remodeladas nesta época, quer com o apoio das confrarias que ali tinham assento, quer com os óbolos dos fiéis. Estão, neste caso, a Sé de Viana, a Igreja de S. Domingos de Viana, a Matriz de Cerveira, a Matriz de Monção, a Matriz de Valdevez, a de Ponte da Barca, etc..
O Barroco em Viana do Castelo
Depois deste percurso tão longo pelo barroco, desde o crepúsculo do maneirismo até aos alvores do neoclássico, começando pela Itália e passando pelo nosso país, limitando-nos a fazer uma ou outra referência pontual a outros países, não porque não fosse importante, mas por acharmos desnecessário para o nosso objectivo, chegamos finalmente ao tema que nos propusemos tratar – o Barroco em Viana do Castelo.
Tudo o que se disse sobre o nascimento e a evolução do estilo barroco era fundamental para compreendermos as várias manifestações desta arte fantasista que, durante século e meio, espevitou a imaginação e a criatividade de tantos artistas que deixaram, na arquitectura, na escultura e na pintura, as marcas indeléveis do seu génio.
Viana do Castelo, vivendo num período áureo da sua história, usufruía de meios materiais mais que suficientes para alterar o seu acervo artístico que vinha do renascimento e, quiçá, da idade média.
E fê-lo com nível inusitado. Igrejas, palácios, construções militares formam um conjunto apreciável de monumentos que ainda hoje nos surpreendem e encantam.
Algumas das suas obras mais importantes ficaram no anonimato. Porém doutras conhecemos bem os seus autores.
Na transição do séc. XVII para o séc. XVIII, existiu em Viana um movimento artístico importante, no qual se incorporaram arquitectos e engenheiros, quase todos voltados para as construções de tipo militar. Foi este grupo dinâmico que fundou a Aula de Fortificação a que presidiu Miguel de L’École, engenheiro da província do Minho. Foi ele que formou alguns discípulos de grande craveira intelectual e artística, entre os quais brilhou, de modo especial, Manuel Pinto de Vilalobos que lhe sucedeu na chefia da Aula.
Pode-se considerar Manuel de Vilalobos um autêntico polígrafo na arte de desenhar. A ele se devem algumas obras importantes na cidade e arredores: a Igreja da Misericórdia, construída desde 1716, a capela do Palácio dos Távoras, actual Câmara Municipal, a Casa da Vedoria, na rua Manuel Espregueira, actual Arquivo Distrital, a Casa da Carreira, na rua do mesmo nome, a Casa dos Barbosa e Maciel, etc.
Fora do perímetro de Viana, Manuel Vilalobos é responsável pela Matriz de Ponte da Barca e, possivelmente, doutras obras cujos autores ainda estão por identificar.
Outro autor sem formação artística, mas que se notabilizou pela arte do desenho, e que muito fez em Viana e arredores foi André Soares.
A ele se devem os altares de talha dourada de Nossa Senhora do Rosário, na Igreja de S. Domingos, o altar de Nossa Senhora da Agonia, a fachada da Igreja da Caridade que foi construída segundo os moldes usados por este artista.
Fora de Viana, traçou o risco da igreja da Senhora da Lapa, em Arcos de Valdevez e da capela exterior do Calvário da Igreja Matriz da mesma vila.
Outro aspecto importante a considerar no período barroco, são os azulejos que, nesta época, recobrem as paredes das igrejas, ora de tapete, ora figurados. Alguns estão por identificar, quanto à sua autoria; outros, porém, estão bem identificados: os da igreja da Misericórida, de Viana do Castelo e da igreja da Montaria, deste concelho, que são obra prima de Policarpo de Oliveira Bernardes, fabricados na sua oficina de Lisboa.”
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