Prefácio
1— UM POUCO DE HISTÓRIA
A partir dos últimos anos da década de vinte, fomos convidados para dirigir o Rancho Regional de Vilar de Murteda (terra da nossa naturalidade) bern como o de Meixedo.
Isto criou em nós o interesse pela recolha dos cantares, romances, contos e costumes regionais, recorrendo não só aos elementos desses Ranchos, mas também aos seus familiares e vizinhos. Em Vilar, foi grande informadora a velha Emília Correia, já falecida há muito. Era inesgotável. Só foi pena que não tivesse sido aproveitada convenientemente, por falta de tempo da nossa parte. Manuel Luís Rocha, já faLecido, foi também um abundante informador.
Em 1933, fomos colocados como professor em Lanheses. Fundou-se a Casa do Povo e nela se criou o Grupo Cónico (cujos espectáculos ainda hoje são Lembrados com saudade) e o Rancho Regional de Lanheses que dirigimos durante mais de vinte anos.
Na Casa do Povo, faziam-se serões, qu3r para ensaio dos ditos Grupo Cénico e Rancho Regional quer para cultura e recreio. Aproveitou-se então a oportunidade para abundante recolha da Tradição.
Aí por 1940, já tínhamos recolhido mais de um milhar de quadras populares, e, achando-as cheias de beleza e sabedoria, resolvemos agrupá-las por temas, segundo o nosso critério, verdadeiramente incipiente, pois nunca tínhamos visto qualquer cancioneiro, que nos servisse de guia.
Um dia, mostrámos esse nosso «ensaio» ao amigo José Rosa de Araújo, que o achou muito engraçado e o levou, para ler. Certamente que ainda por lá o deverá ter, se o não perdeu. Nós ficámos com o rascunho.
Porém, na mesma altura, aquele nosso amigo informou-nos de que já havia um Cancioneiro de Viana, recolhido pelo Tenente Afonso do Paço. Imediatamente procurámos adquiri-lo, o que conseguimos, não sem alguma dificuldade.
É claro que continuámos interessadamente com a recolha de quadras e de toda a tradição popular. Os próprios alunos da 4.ª classe da escola foram grandes colectores, através de suas mães, avós, vizinhos, etc., orientados por nós. José dos Santos Caldas (Velho) e Manuel Gonçalves Franco (Manuel Carvalho) foram grandes informadores, além de pessoas amigas de Fontão, Ponte de Lima e Viana. Juntámos, assim, maços e maços de papel.
Um dia, já de posse do dito «Cancioneiro de Viana», resolvemos confrontar as quadras por nós recolhidas (cerca de 2.500) com as do dito «Cancioneiro» (1.500) e verificámos:
1) Que uma boa parte delas já dele constava (o que nele anotámos);
2) Que havia outra parte que também dele constava, mas com pequenas variantes (que anotámos);
3) Que muitas das nossas quadras (cerca de mil) não constavam dele. Inscrevemo-las nele, a lápis, à margem das que já lá estavam, por ordem alfabética. Houve páginas em que tivemos de inscrever mais de uma dúzia delas. (Conservamos zelosamente este trabalho);
4) Que, finalmente, do «Cancioneiro de Viana» constavam também algumas quadras que não constavam da nossa recolha. Lemo-las aos nossos informadores, que reconheceram algumas delas, pelo que as aproveitámos. As restantes (cerca de 90, que não foram reconhecidas) não as aproveitámos.
Ao fazer este trabalho de reconhecimento, os nossos informadores evocaram, por associação de ideias, numerosas outras quadras, aumentando assim a nossa colheita.
Em 1953, viemos para o Porto, como professor de Didáctica da Escola do Magistério. Dedicámo-nos então à escrita de obras pedagógicas o que, juntamente com as funções docentes, nos absorvia todo o tempo.
Todo o material de recolha htstórico-etnográ fica foi por nós arrumado, ficando, durante cerca de trinta anos, arquivado (aos ratos e à traça) na casa de Lanheses e, mais tarde, na do Porto.
Só depois cio nosso limite de idade, com a aposentação, resolvemos começar a remexer esse material bafiento e rendilhado pela traça. Mas com certa dificuldade, pois a falta de vista já não nos permite certas tarefas, como a consulta de documentos antigos com letra esmaecida. Também, com a nossa actual residência no Porto, perdemos a possibilidade de rectificar, confirmar e ampliar esse material, in loco, pelo que, nesta parte, o trabalho não se pode considerar exaustivo, do que pedimos desculpa.
2— CRITÉRIO SEGUIDO NA ORGANIZAÇÃO DO CANCIONEIRO
Porque começamos os nossos trabalhos pela parte histórica (monografia de Lanheses e Vilar de Murteda), só agora (1989) chegou a vez a este «Cancioneiro da Ribeira Lima».
Com põe-se ele de duas partes: a alfabética e a temática.
O critério que temos seguido na parte temática é ainda o mesmo que utilizámos em 1940, pois não encontrámos (o que não quer dizer que não exista) qualquer outro cancioneiro nos moldes deste por onde nos pudéssemos orientar.
As quadras foram classificadas em 42 capítulos, alguns subdivididos em temas, num total de 464 temas. Cada tema é documentado com a apresentação de algumas quadras, das mais significativas, sendo as restantes, que se lhe referem, indicadas pelo seu número no cancioneiro alfabético.
A maioria dos temas é ainda precedida de um pequeno comentário nosso. A parte temática é, pois, uma bela antologia, que se lê com bastante agrado.
3— CÓDIGO DA VIDA E REPOSITÓRIO DA SABEDORIA POPULAR
Como se poderá ver, até pelo índice temático, o cancioneiro é um verdadeiro código moral e um autêntico repositório da sabedoria popular. Tudo nele foi registado: desde a família à terra natal, desde a religião ao trabalho, desde os dotes corpóreos à magnificência das flores, desde os acidentes geográficos ao firmamento, desde a vida militar à emigração, ao analfabetismo, ao sarcasmo, à solidão…, à vida, à morte.
São, porém, as cantigas sentimentais sobre o amor as mais abundantes: sentimentos doce-amargos da paixão, da esperança, da doação, da dúvida, do ciúme, do desamor, da ingratidão, da dor, da pena, da tristeza, da súplica — bem como outros mais positivos, de confiança, personalidade, dignidade, etc. Não é esquecido também o amor sensual, o poliamorosismo, a sedução, a volúpia, com as suas consequências (desonra, difamação, condição da mulher).
Ora, como diz o Dr. Levi Guerra (Voz Portucalense de 16-06-88) «as tradições, na vida de um povo, têm enorme interesse e merecem análise». Todos os povos têm a sua tradição, que se projecta em comportamentos. É como o projectar, no hoje, do ser de ontem duma nação. É sinal de valores que moldaram a cultura e os hábitos de um povo. Encerra ensinamentos e pauta hábitos. Está muito arreigada na vida das pessoas e das instituições. É por isso que suprimi-la ou alterá-la se acompanha de muitas dificuldades».
Efectivamente, assim era. Mas, actualmente, os meios de comunicação social, sobretudo a televisão, com alguns programas indecorosos, arrastam, principalmente a juventude, para situações de degradação, geradoras de desgraça, de prostituição, de crime.
Por isso este cancioneiro, especialmente no aspecto – sentimental-amoroso, já pouco mais é do que um repositório do Passado, com pouca projecção no Presente.
4— ORIGEM DAS CANTIGAS POPULARES
A maior parte delas teve (e tem, pois estão sempre a ser criadas e modificadas) uma origem popular, anónima.
Os cantadores ao desafio, embora servindo-se, em parte, de quadras conhecidas, têm necessidade de improvisar outras, que depois ficam fazendo parte do repositório popular.
Algumas, porém, tiveram uma origem erudita, mas, dada a beleza do seu conteúdo, o seu gosto e jeito populares, o povo apossou-se delas, por vezes adaptando-as, limando-as, alterando-as. Deu-se a sua popularização.
5— VARIANTES DE QUADRAS
Uma quadra, embora traduzindo sensivelmente a mesma ideia, pode apresentar variantes, mais ou menos próximas, resultantes de lapso de memória ou de adaptação a casos regionais, divergindo, portanto, conforme a localidade, o cantador, etc. Quer dizer, essas variantes resultam do facto da poesia popular ser conservada de memória e transmitida por via oral, sem fixidez. Observemos as seguintes:
775 (1) 88A
Eu já amei e fui amada, A folhinha do salgueiro
Nunca o amar me custou: É a primeira novidade.
Quem diz que o amar que custa Quem madruga não alcança,
É certo que nunca amou. Que fará quem se ergue tarde.
2007 621
Quem diz que o amar que enfada É a folha do salgueiro
É certo que nunca amou! A primeira novidade.
Pois eu amo e sou amada, Quem madruga não alcança,
Nunca o amar me enfadou. Que fará quem se ergue tarde.
Entre a 775 e a 2007, a diferença consiste pouco mais do que na troca da ordem dos dois dísticos; entre as 88A e 621, a diferença está, quase só, na diferente ordem de colocação dos elementos da oração.
Deveriam registar-se as duas variantes?
Caso negativo, qual a preferida?
Nós optamos pelo registo de ambas: 1.0, porque permite a sua consulta no cancioneiro alfabético, mesmo a quem conheça apenas uma das variantes; e 2º, porque permite o estudo da maneira como o povo as maleabiliza.
Há também versos e até dísticos que servem de início a várias quadras. Ver, por ex., no cancioneiro alfabético as n.0’ 565/66/67 e 483/4/5/6/7.
6— LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA DAS CANTIGAS
Os informadores de que nos servimos eram todos da Ribeira Lima, com seu foco principal em Lanheses. Não eram, porém, todos analfabetos, nem idosos, como seria nosso desejo.
Apesar da recomendação de que apenas queríamos recolher literatura popular e tradicional desta região, é possível que um ou outro, desconhecendo a sua origem, apresentasse material para aqui trazido, não por ele, mas por outras pessoas, durante as suas migrações.
Aliás, é fácil constatar, pela consulta de cancioneiros de diferentes regiões, que muitas quadras e romances tradicionais são comuns a todas elas.
Chegou-nos à mão um cancioneiro do Algarve do princípio deste século, e, apesar da distância no tempo e no espaço, encontrámos nele registados romances e quadras iguais aos que aqui recolhemos, apenas com pequenas variantes, corruptelas e omissões, provenientes da sua transmissão de memória e por via oral, pois o assunto é o mesmo
Quer dizer algumas quadras populares não tem hoje uma localização regional determinada mas são de âmbito nacional.
Quanto a genuinidade das que constam deste cancioneiro o que podemos garantir e que foram recolhidas nesta região e de residentes
7—SUA CONSERVAÇÃO ORAL
Verificou-se principalmente nos meios rurais, por serem mais fechados portanto mais conservadores das suas tradições. Hoje, porém, com a morte dos informadores e com a penetração dos meios audiovisuais, essa tradição vai-se esfumando.
8—DIFUSÃO DAS CANTIGAS
Para a difusão e dispersão das cantigas a nível local, muito contribuíram os afazeres rurais, realizados em grupo (serões, fiadas, espadeladas, esfolhadas, malhadas, sachadas, etc.) que eram também as suas grandes escolas.
A nível regional, temos as grandes romarias (Senhora da Peneda, S. João de Arga, Senhor da Saúde, Feiras Novas de Viana e de Ponte de Lima, etc.), as festas paroquiais, bem como as feiras periódicas (Viana, Lanheses, Ponte de Lima, Arcos, etc.), para onde o povo se dirigia a pé, cantando e dançando, quer no percurso, quer nos próprios arraiais.
9— ESTRUTURA DAS QUADRAS
Uma quadra popular é em geral constituída por dois duetos ou dísticos, de dois versos cada, entre os quais se faz uma pequena pausa. Cada dístico é como que um termo da quadra, na qual, em regra, se faz uma comparação (Vd. 86) ou uma antítese (Vd. 2106):
86 2016
A folha da oliveira Rua abaixo, rua acima,
Botada ao lume estala: Todo o mundo me quer bem:
Assim é meu coração Só a mãe do meu amor
Quando contigo não fala. Não sei que raiva me tem.
Há, porém, quadras em que não existe relação lógica entre o 1º e o 2.° dístico. Neste caso, o 1º dístico refere-se, em regra, ao ambiente geral, e o 2.° é que contém o tema particular:
88 287
A folha do castanheiro A salsa subiu ao alto,
É recortada na ponta. A hortelã ao telhado,
Quem eu quero não me quer, Minha bela rapariga,
Quem me quer não me faz conta. Só tu és do meu agrado.
Além da troca do v pelo b, que continua em regra a manter-se, existem outras deturpações na pronúncia das palavras, bem como algumas formas arcaicas, que persistem, sobretudo em pessoas idosas, mas que nas novas vão desaparecendo, mercê da influência da escola, da leitura, da radiotelevisão, etc.
Nós temos um pequeno glossário dessas formas regionais. Porém, neste cancioneiro não as registamos.
11— TRATAMENTO AMOROSO
As formas populares mas usadas são: «amor», «meu amor(zinho), «meu rico amor(zinho)
Neste cancioneiro há 115 quadras começadas por «o meu amor», mais 18 começadas por «amor(zinho)». Há ainda centenas de outras em que entra a palavra «amor», sem ser inicial.
Mas, além daquelas, o povo usa também muitas outras formas de tratamento amoroso de rara beleza:
1 — EXPRIMINDO TERNURA
— minha amada;
— amor da minha alma (1363); (2)
— meu (querido) bem (41, 54, 83);
— raminho de bem-querer;
— chave do meu coração (236);
— fechadura do meu peito (236);
— oratório do meu peito (1057); etc.
2— EXPRIMINDO BELEZA CORPÓREA:
— cara de neve;
— (minha) cara linda (967);
— cara cheia de sinais (1073);
— meu rosto encantador (203);
— cabelinho aos anéis (1090);
— cabelo de ouro (1002);
— cabelos louros (1124);
— (meu) corpo lindo (226); etc.
3— COMPARANDO COM AS FLORES:
— minha flor;
— meu (lindo) botão;
— linda rosa (114);
— lindo (pé de) cravo (114, 230);
— boca de cravo (1465);
— lírio santo (1145);
— fresco lírio plantado à beira-mar (1075);,
— alto lírio roxo (1358);
— manjericão da janela (1041);
— manjericão redondinho (1043);
— alecrim, rei das flores (132);
— salsa da minha varanda (224);
— raminho de salsa crua;
— linda açucena mimosa (1021);
— raminho de erva cidreira (1068);
— goivo roxo (1673);
— ramo (inho) de oliveira (1735);
— pinheiro verde (1060);
— meu lindo ramalhete (114, 491);
— jardim da minha varanda (230);
— loureiro, lindo loureiro (1030); etc.
4— COMPARANDO COM FRUTOS:
— minha cereja bical (1164);
— meu limão (entrecolhido) (1164);
— minha maçã vermelhinha (1170);
— minha maçã camoesa (1166);
— minha amora madurinha (1161/9);
— cara de limão maduro (353);
5— COMPARANDO COM ANIMAIS:
— coração de pombinha (1405);
— pombinha branca (1694/5) ;
— pombo rolador, etc.
6— COMPARANDO COM ASTROS:
— minha estrela (1743);
— adorada das estrelas (81);
— meu sol (83);
— minha luz (83); etc.
7—COMPARANDO COM AS JÓIAS:
— minha prenda (2451);
— caixinha dos meus segredos (224/30);
— vidrinho de cheiro (1050);
— anel de sete pedrinhas (213/4);
— ramo de ouro (234);
— salvinha de prata (964); etc.
8—TRATAMENTO VULGAR:
— moço;
— rapaz;
— menino;
— moça;
— mocinha;
— rapariga (há 11 começadas);
— menina (há, 39 quadras assim começadas. Vd. «cancioneiro alfabético»).
(1) Este é o n.° de ordem da quadra no Cancioneiro alfabético.
(2) Estes n.os (Vd. «Cancioneiro aIfabético») correspondem a uma das muitas quadras em que foi usado o tratamento referido.
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