Linhas de Leitura
Entre uma espécie de introdução (antes de…) e um remate (depois de…)o corpo do livro inclui 53 textos servidos por ilustrações de Armando Abreu a iniciarem cada uma das suas sete partes: Senhor de Cronos; Imensa é a frustração; vamos rir; oh deus!; amor ao ocaso; fácil voar e re-mar adentro.
O tema da primeira sequência de textos é sempre o tempo que umas vezes o autor chama de ‘tempo’, outras de ‘cronos’ e o vai medindo ora através dos relógios orts das clepsidras. É um tempo irrecuperável, bem ao gosto dos clássicos, e por isso ao poeta apetece quebrar os relógios
Se eu pudesse
mandava quebrar todos os relógios
e decretava que o tempo parasse
e as clepsidras
Mas espero-te além das Horas
onde nos amaremos
quebradas todas as clepsidras
na mais ancestral ânsia de se tornar dono e senhor absoluto do Tempo. Em imensa é a frustração, Carvalhido da Ponte fala das (des)ilusões do momento, do vazio e do caos, do Nada e do Zero, da desordem social e da dúvida religiosa. Eis porque, se pudesse, quebraria os relógios. Mas há sempre esperança no sujeito lírico
posterior a tudo
e antes do fim
procuro em mim
Orfeu quase mudo
a esperança que trago
O livro termina com uma “bela série de poemas sobre a história nacional”, no dizer de Alberto Abreu (A Poesia Vianense no último quartel do século XX)
Excertos
Antes de …
Antes de Cronos partiram-se todos os espelhos. E foi o Princípio. De então para cá o Homem tem buscado, aqui e ali, bocados da sua memória numa sobrevivente necessidade de encontrar o seu passado colectivo. Para ser feliz. Para construir um futuro, mais feliz ainda, no plural dos indivíduos.
Um dia, quando todos os pedaços coloridos do nosso painel-memória forem saboreados e entendermos a sua relação, voltará a totalizar-se o espelho. Na banda de lá, na outra margem do mosaico, na margem da ilusão ( ou do real?!) ver-nos-emos. Todos. Inteiros. Iniciais. No plural do espelho partido acharemos a nossa individualidade. Nas sementes do passado perceberemos as raízes do futuro. Só então nos encontraremos. E seremos felizes. Porque seremos. Narcisos de uma e outra banda. Deuses. (1988)
SENHOR DE CRONOS
Foge, irrecuperável, o tempo.
Eu fico.
Ficarei.
Aqui.
Mas espero-te além das Horas
onde nos amaremos
quebradas todas as clepsidras.
Depois do cio
serás sémen
depois do sémen poesia
e contigo dominarei,
senhor de cronos.
(1988)
SEI-ME
Sei-me
no recordar dos tempos que foram
no reler das históprias conjubtas
no reamar das horas sozinhas.
Sei-me
como quem se lê
nas palavras devassadas
do onanismo colectivo.
Sei-me no fecundar das ideias Todas
no orgasmo das imagens tutelares
na cópula infecunda das minhas dissertações.
Sei-me.
(1987)
SE EU PUDESSE
Se eu pudesse
mandava quebrar todos os relógios
e decretava que o tempo parasse
e os homens fossem
sem que tivessem de ser
no impossível instante.
Se eu pudesse
proibia as margens
anulava os condicionais
e os ses e os mas e os todavias
e tudo
e mandava que castradores não castrassem
e os policiais não policiassem.
Se eu pudesse
havia de não Poder
e de não Proibir
e de não Decretar
e de não Mandar.
Se eu pudesse
havia só de Viver.
(1988)
OS DEUSES NOS DERAM UM PERCURSO
Os deuses nos deram, um percurso,
este,
que, sozinhos ou de mãos dadas
( se possível de mãos dadas),
importa percorrer.
Os deuses nos deram o veneno de um percurso,
este,
que disseram livre,
entre margens e condições.
Assim nos contentaram
e se contentaram de haverem criado
imagens e semelhanças das suas sombras prescritas.
Os deuses nos deram, um percurso,
este,
com a proscrita mensagem
de, por ele, chegarmos a leles.
E se nós os buscamos
quando nos buscamos!
Caminhemos, pois, se esse é o fado,
mas tão só nós, inteiros,
nunca cordeiros de sacrifício.
Cumpramos o percurso que tem de cumprir-se,
fitos os olhos na eterna fluidez do momento!
– Não nos deram o futuro e já perdemos o passado.
Só o agora vale, o já.
Tudo o resto é devir.
(1994)
RE-MAR ADENTRO
Já nos contaram todas as histórias
e falaram de todos os poetas
e até nos embebedaram
com licores de Ásias e Calecutes.
Já nos disseram todos os exércitos
e mostraram todas as guerras ganhas
e cruzes e padrões levantados
para que Deus e o Rei
fossem adorados
por gentes tantas e estranhas.
Mas não re-contaram.
Urge re-dizer velhas ladainhas.
importa re-tomar caminhos
de novo ignaros.
Urge re-mar adentro de
e re-conquistar!
(1988)
DEPOIS DE …
Vimos do nada, não! Vimos
de outro, de outros. Somos
nós e os que connosco são. E
somos também, os que
foram. Também, não: acima
de tudo. Desde o primeiro
‘big-bang’ o artista nos vem
moldando
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