Prefácio
Poética de Olívia Cardoso: um percurso de pureza
Os discursos que se cruzam na escrita de Olívia Cardoso podem, se visamos uma categorização literária e linguística, situar-se na esfera da enunciação lírica. Uma abordagem mais cuidada colocá-los-ia no espaço da dramatização dialógica.
Expliquemo-nos um pouco.
Entre o discurso marcadamente subjectivo da linguagem à procura de um leitor não assumido mas desejado, perde-se o sujeito que afirma, categoricamente, “sinto-me perdida”. Nesse percurso, não de descoberta mas de domínio do Outro, só há lugar para sentimentos fortes como Amar, Odiar, Querer, Desejar, até chegar ao “arder de desejo” ou, mais indelével, no “ribeiro (que) escorre no ser”. O Drama, por outro lado, existe na / pela ausência do Outro. A reiterada construção dialógica, a metamorfose permanente do Tu na “chuva”,ou seja, a obsessiva procura do Tu não parece senão a necessidade imperiosa da descoberta do Eu. O espaço de liberdade do sujeito é, por isso, mais intelectual do que sentido. O desejo de liberdade do sujeito corresponderá à prisão que se quer no Outro, retenção do Outro no espelho do Eu. O lirismo torna-se sempre dramático na confluência do desejo com a impossibilidade permanente e por isso o enunciador declara “estou a cair”, “eu não sei como fugir de mim”. Essa irrupção do interior do sujeito mais não é do que esse desejo absoluto não de liberdade mas de libertação. A poética de Olívia Cardoso constrói-se na procura da reunião das peças quebradas de um todo. Para isso utiliza uma estrutura rítmica, paralelística e anafórica com algumas construções antitéticas e até paradoxais. A pureza da poesia de Olívia Cardoso está nessa estrutura paralelística em que as palavras estendem a sua leveza. O erotismo, enquanto manifestação do/ao outro, irrompe em muitos dos seus poemas procurando realizar os “desejos abafados / os sentidos adormecidos”, num dramatismo gradativo. Estamos assim perante uma poesia que, na esteira de Florbela Espanca e de outros grandes poetas, constrói com a linguagem o estado etéreo da síntese impossível. Através da poesia, a autora vai percorrendo, no mundo antagónico de desejos e realidades incompatíveis, o seu caminho. Esse caminho vai-se tornando mais purificado à medida que sobe na delapidação das palavras, na purificação da linguagem, na contenção sentimental.
Benjamim Moreira
Excertos
CIÚME
O vento rasga teu peito
Numa corrida frenética
Rio acima.
Lâminas de brisa
Cortam-te a pele.
Voas sobre as águas
Como se elas fossem tuas.
……………………….
Na margem
O coração dói
E sinto uma imensa inveja
Do rio, do vento,
De tudo em pensamento.
SOLIDÃO
Aqui sentada,
Olho os quadros e os pratos
Simetricamente colocados.
Então enraiveço o meu ser
Que se enche de doce fúria
Contra minha casa cheia e vazia.
Contra mim, que espero calada e fria
Que chegue o que não chega,
Que venha a força que não vem…
MORTE
Já morri
E nem deste por isso
Deixei de respirar
E não te sobrou ar na sala
Meu coração deixou de bater
E teus ouvidos continuam mergulhados no silêncio
Meu corpo arrefeceu
E não sentiste a alma cada vez mais fria
Morri
E nem deste por isso
Na cama da imaginação
Tudo arrefeceu
E o canto que era nosso
Agora está frio…
E é só meu.
Amanhã
Acorda-me cedo
Tenho de ir…
No fio da minha vida
Continuo a deslizar
E sinto-o cada vez mais estreito. (p. 61)
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