Prefácio
Os estudos que têm como temática as populações de outrora constituem uma fonte inesgotável de informações e até de… surpresas. Desde os seus comportamentos no plano biológico, às suas condições de vida material, aos tipos de alimentação dominante, à higiene e cuidados de saúde, à sua postura face à cultura institucionalizada, às redes locais de influências, às leis caracterizadoras da sociedade de cada época, aos meios de transporte e de circulação, tudo neles se reflecte e para aí remete o investigador. Por isso nenhum país pode conhecer convenientemente o seu passado, se essa vertente da sua cultura não estiver convenientemente desvendada pelos especialistas.
Felizmente, estudos deste tipo inserem-se numa longa cadeia de interesse dentro da nossa tradição cultural, remontando muito longe. Há já cerca de vinte anos que Joel Serrão e Arnaldo Pereira apresentaram, num colóquio, em Berlim, uma “Inventariação das Fontes e Bibliografia Relativas à Emigração Portuguesa (Épocas Moderna e Contemporânea)”, onde teceram comentários adequados às fontes e a alguns estudos importantes sobre a matéria. Anos antes, o Prof. Dr. José-Gentil da Silva havia já abordado o assunto, em estudo de síntese, intitulado “A Emigração para a América nos Séculos XIX e XX e a História Nacional: Os Portugueses e a América”. Ambos remetem para estudos, fontes, sínteses e discussões, provando a antiguidade e a importância de tal temática, aliás, conhecida através de uma literatura apaixonada que remonta muito longe no século passado. Em 1993 foram publicadas as Actas de um colóquio internacional havido em Lisboa no qual foram abordadas as várias vertentes da emigração/imigração, por especialistas de várias épocas, instituições e formações académicas, o que mostra a pertinência de trabalhos nessa área do conhecimento e a sua constante mutação de perspectivas e de modelos interpretativos. Dentre estudos originais saídos recentemente sobre tal matéria parece justo destacar dois, por terem o Brasil como pano de fundo: “Os Brasileiros. Emigração e Retorno no Porto Oitocentista” e “Portugueses en Brasil en el Siglo XX”.
É a esta corrente, sempre viçosa e renovada, que vem juntar-se agora o notável trabalho do jovem e talentoso pesquisador, mestre Henrique Rodrigues. Ele abrange o essencial das matérias recolhidas durante anos e apresentadas como dissertação de mestrado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde lhe foi atribuída a classificação máxima. Nessa ocasião foi sugerido ao seu incansável autor que diligenciasse publicar o seu estudo, uma vez que ele o merecia, quer pela sua qualidade indiscutível, quer por permitir aos estudiosos conhecer “por dentro” uma região tão rica, variada e importante como é o coração do Alto Minho.
Baseando-se num estudo exaustivo dos elementos constantes nos passaportes, emitidos em Viana do Castelo entre 1835 e 1860, procurou o autor desvendar por que razões se abandonava o solo pátrio, partindo-se à aventura, buscando-se, lá longe, os meios materiais e/ou até condições para uma promoção na escala social da região, negada a muitos dos mais capazes, por razões que pouco tinham que ver com os dotes de inteligência ou com a sua capacidade de iniciativa. Desde logo se verificou que quem emigrava eram os jovens do sexo masculino, Aliás, a formação e custeamento do exército eram contrários ao princípio da saída dos jovens do país. Daí a “necessidade de controlar o mais cedo possível os jovens ou extorquir-lhes um quantitativo capaz de suavizar as despesas excessivas que eram gastas com o exército”, como refere muito bem o autor. Para responder pelo jovem surgiu a figura do abonador, cujo enquadramento legal foi aqui estudado para o período escolhido e a fiança ou compromisso “segundo o qual o mancebo emigrante, tendo uma idade compreendida entre os dezoito e os vinte anos, caso seja sorteado para cumprir o serviço militar, apresentar-se-á (…), ou custeará as despesas para “contrato” de um substituto”. A legislação nacional oscilou entre a dissuasão e a repressão, inclinando-se mais para a primeira. Mas os engajadores vieram a tornar-se numa verdadeira “praga social” que a própria legislação quis combater, mas a que se opuseram enormes obstáculos, como é sabido.
O que é que, afinal, compelia os minhotos a deixarem a sua amada terra? O autor fez vários exercícios de reflexão e análise e inclina-se para que tanto a conjuntura política como a economia em dificuldades, aliciaram os jovens a saírem, Milho, centeio, trigo e vinho em baixa de produtividade exigiam sacrifícios aos menos resguardados pela sorte do nascimento. Crises agrícolas e emigração para o Brasil tornaram-se, desse modo, um binómio de solidariedade no Alto Minho durante o período considerado. E não saíram apenas jovens isolados. Acompanharam muitas vezes os seus pais, partindo ainda crianças.
O autor procurou estudar, com todo o cuidado, os grupos etários dos emigrantes, considerando, mesmo, que houve um ciclo até 1850 e que o movimento era alimentado por factores que variaram sazonalmente. Neste aspecto, parece-nos que o autor desceu a uma análise inteligente e muito minuciosa dos dados disponíveis, o que nos apraz louvar aqui, sabendo, embora, que nem sempre a lógica da explicação histórica coincide com a da vida em evolução própria e, por vezes, inexplicável por aquela.
Onde, contudo, este meretíssimo trabalho fornece mais contributos novos à cultura local e nacional é ao abordar a origem concelhia, a situação sócio-profissional e cultural dos emigrantes. Aí surgem surpresas. E estas situam-se quer ao nível das escolas, oficiais e particulares, em funcionamento, quer ao nível dos conhecimentos mínimos (alfabetização) dos que saíam do país. Muitos destes apresentaram um invejável grau de cultura, o que contraria uma velha corrente de opinião que se comprazia em afirmar que o emigrante era sinónimo de ignorante. Este trabalho prova o contrário e apresenta até a virtude de procurar acompanhar a análise dessa vertente de preparação dos emigrantes ao longo das décadas que estuda. E fá-lo de uma forma cuidadosa e criteriosa, observando os dados, em pormenor, ano a ano. Assim pôde o autor afirmar que em “anos como o de 1836 e 1847, as saídas para o Brasil só ocorrem com pessoas que sabiam ler, escrever e contar”, o que é notável. Mais: foi ao longo do primeiro ciclo (até 1850) que “se assistiu à ausência dos melhores quadros, ou seja, quanto mais novos são os emigrantes mais notória é a preparação na arte de «ler, escrever e contar», o que reproduz uma mentalidade observável desde o século XVIII, cuja miragem do Brasil levava as famílias a instruírem, desde tenra idade, com determinadas habilitações, os filhos que eram destinados a seguirem para o Brasil”, contrastando esta prática com o sucedido na vizinha Galiza. Analfabetos também os havia, claro, mas, regra geral, eram em menor número e mais idosos.
Mas o Dr. Henrique Rodrigues abordou também a emigração familiar e a reemigração. Nesta parte mostrou como funcionaram os laços de parentesco, visto que foram os pais ou os irmãos quem agrupou a família para partir e considerou o fenómeno da reemigração, aspecto mal documentado, para sobre ele se fazerem juízos fundamentados. Não esqueceu também os chamados quadros familiares precários, isto é, expostos, filhos ilegítimos e órfãos, nos quais constatou “uma preparação profissional e nível de instrução muito acima dos padrões da época”, o que parecia compensar a fragilidade do seu núcleo de origem. Como que a sociedade da época procurava compensar dessa forma aquilo que lhes havia negado em estabilidade familiar. Esse traço, de tentar assegurar uma certa justiça na inserção social de cada elemento, afigura-se-nos como um elemento da sensibilidade colectiva oitocentista, a qual, ao remorso da culpa (do nascimento ilegítimo e do abandono) opunha uma solidariedade mais viva e actuante do que, talvez, imaginaríamos.
Ao fechar o estudo, abordam-se os objectivos explicativos e os destinos desejados. Também aí surgem dados a reter para se poder caracterizar bem esta sociedade alto-minhota oitocentista, que as conclusões finais enriquecem e iluminam.
Para concluir, à guisa de prefácio, muito me apraz afirmar publicamente que o mestre Henrique Rodrigues é já uma certeza na historiografia contemporânea de Portugal. Nos últimos dois anos publicou vários e excelentes trabalhos que abordaram a emigração clandestina para Espanha, a repressão miguelista no vale do Lima, a emigração para o Brasil, os reflexos das conjunturas políticas e económicas na emigração, o ensino pré-escolar no Alto Minho, os alunos examinados no Liceu de Viana, em 1861, com destino ao seminário de Braga e outros mais. Como se vê, a sua capacidade de trabalho é notabilíssima e a sua vontade em doutorar-se com todo o mérito académico mantém-se firme. Consegui-lo-á. Disso estou certo.
Porto, 31 de Março de 1995
Eugénio Francisco dos Santos
(Professor Catedrático da Faculdade de Letras do Porto)”
Outros
Contra capa
“Henrique Rodrigues é Licenciado em História pela Universidade do Porto (1980). Mestre em História Moderna e Contemporânea (1992) e Doutorando pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Professor-adjunto da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo.
Investigador na área da História da Família (dinâmicas migratórias e alfabetização no século XIX), tem publicações em Espanha, no Brasil e em várias revistas nacionais da especialidade.”
“Do jovem e talentoso pesquisador, mestre Henrique Rodrigues, os estudos que têm como temática as populações de outrora constituem uma fonte inesgotável de informações e até de… surpresas. Este meretíssimo trabalho fornece mais contributos novos à cultura local e nacional ao abordar a origem concelhia, a situação sócio-profissional e cultural dos emigrantes.
(Do Prefácio)”
Excertos
“EMIGRAÇÃO E LEIS DE 1760 A 1863
1- A ACÇÃO DO MARQUÊS DE POMBAL
A necessidade de implantar estruturas de segurança pública, a partir de meados do século XVIII, vem expressa no alvará de 13 de Agosto de 1760, e surge para definir os processos de fiscalização das deslocações dos transeuntes, a quem era exigido o uso de um documento de mobilidade. Deste modo era feita a supervisão sócio-profissional, quer em Lisboa, quer nas várias comarcas, através do uso de passaportes internos.
Para obviar aos problemas de estrangulamento económico e de abastecimento de Lisboa, o Marquês de Pombal isentou, desta obrigação, os comerciantes que forneciam diariamente a capital. Enquanto que estes estavam dispensados do instrumento de deslocação por via terrestre, a mesma prerrogativa não era extensiva aos que o faziam por via fluvial, a quem era obrigatório exibir o documento de trânsito. Nestes passaportes, além da validade de um ano, vinha expressa, na forma de sinais, a identificação do portador respectivo.
A obrigatoriedade do seu uso, extensiva aos feirantes, vem de encontro à tentativa da criação de uma apertada vigilância com o fim de garantir a segurança pública. Para melhor reconhecimento e fiscalização dos viandantes, os passaportes eram assinados pelo juiz de fora e pelo escrivão da comarca.”
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