Prefácio
Meu caro Couto Viana
Quando soube que e por que fora internado, não fiquei surpreendido, surpreendido, tão mal o vira ultimamente, mas preocupado. E também contristado, porque, egoisticamente, – não posso deixar de confessá-lo senti logo a falta do seu convívio, da sua graça, da sua erudição quem, senão a sua memória, para responder, esclarecendo dúvidas e corrigindo lapsos? E o poeta? O poeta, esse o temos sempre à mão de semear para o ler e reler.
Veio depois a melancólica procissão ao hospital, o ter de aguardar vez na fila ou de sair para dar lugar a outros, numa visita que, de tão rápida poderia chamar médico.
À preocupação das primeiras horas, das primeiras horas, dos primeiros dias, das primeiras semanas, sobreveio a esperança, como um raio de sol na atmosfera carregada. Pouco a pouco, foi reagindo física e espiritualmente, já interessado pelos que se passa a volta, rodeado de livros e papéis, já escrevendo novos poemas, ou não fosse a poesia o seu pão e a sua razão de viver. Disse então com os meus botões: – Temos homem!
Aqui está, nesta mão-cheia de poemas, a decantação do seu sofrimento. Não há dor da carne sem dor do espírito. Obedecendo à sua vocação e ao sábio conselho de fazer da própria dor um poema, o meu Amigo escreveu, para sua catarse e nosso proveitoso e exemplo, acrónica – ou, como prefere chamar-lhe, a “reportagem” – da sua estação na via-sacra hospital. Algumas das piores “horas de angústia e enfado”, como se lê na dedicatória, as terá vivido na Páscoa. Desligada da paixão de deus, que sentido teria a paixão do Homem, abandonado a si próprio numa solidão desumana?
O sofrimento próprio não o isolou do sofrimento alheio. Com espírito de solidariedade, e também com sentido de observação, olhou à sua volta, ora compassivo, ora crítico. Alguns dos seus companheiros de enfermaria são mais infelizes, ou porque atingidos de mal incurável, ou porque ninguém ou quase ninguém os visita, ou porque, enfim, não lhes foi dado o dom da poesia e, portanto, o da libertação pelo verbo. Não é vasta a galeria dos seus irmãos na dor, mas significativa como imagem da nossa condição dolente. Há os impacientes, e até os coléricos, os mergulhados na inconsciência e na senilidade, os murados em si próprios e os solidários como bons samaritanos.
Sabe o meu Amigo o que me ocorreu quando lia estes “retratos” de doentes? As Memórias do Cárcere de Camilo. A prisão e o hospital têm de comum o serem um espaço fechado, um huis clos, um lugar em que se está involuntariamente confiando. Afastado do seu ambiente e da sua privacidade, vigiado, controlado, os seus arrastam-se e as noites parece não terem fim. O drama dos outros alivia o nosso próprio drama? O espectáculo do sofrimento não nos deixa indiferentes, mas agrava a nossa sensação de angústia e de impotência.
Ao lado dos doentes, desfilam, na sua azáfama profissional, os provisoriamente sãos – corpo clínico, pessoal de enfermagem, pessoal auxiliar. Agem uns friamente mecanizados, põem outros um suplemento de coração e de solicitude no trato de pacientes, seres desarmados que têm apenas de seu a miserária da carne e a aflição do espírito. Aos que são sobretudo funcionários ou burocráticos, não poupa o meu Amigo a sua crítica – crítica ou protesto que se enstede às entidades oficiais que prometem grandes reformas, ou até revoluções, na Saúde e parece não terem olhos para verem a degradação das instalações, como se ao doente não assistisse o direito, não direi ao conforto de um hotel, mas às decência de um alojamento que não lembre um “barracão” ou uma geena. E lembrar-se a gente que estamos na Europa!
A sua gentileza de poeta não nega, porém, uma palavra de simpatia e apreço àqueles a quem chama “Anjos da Guarda da Enfermaria”, que “com seu encanto, com seu sorriso”, como que fazem antever o Paraíso nos círculos mesmo do inferno.
Belo, comovido testemunho o seu, caro Amigo. Porque não pratica o pecado da omissão dos poetas que o “velho bardo” Manuel Bandeira chamava de “bissextos”, tão avaros em escrever e publicar, o Couto Viana acescenta mais um título a uma obra de tnatos títulos. E apraz-me a um vianês ilustre, tão dedicado à sua terra. Perante este não comum exemplo, apetece dizer que amor com amor se paga.
Desejando que por muitos anos continue ainda a oferecer novos e saborosos frutos aos seus amigos e admiradores, creia como um deles e com um abraço.
João Bigotte Chorão
Lisboa, 1 de Julho de 2000
Outros
Badanas
António Manuel Couto Viana pode ser considerado o melhor poeta vianense vivo e mesmo uma das poucas figuras vianenses verdadeiramente ncionais. O livro de poesia com que se estreou foi O Avestruz lírico, em 1943 pelo menos, em jornais locais, de Viana, Braga, Valença e Lisboa. Foi na capital, para onde se deslocou para se dedicar à actividade teatral, que afinal expandiu a sua vocação poética. Tendo-se iniciado, como tantos outros poetas, arrimado a “inspiração alheia”, liderou um movimento de renovação da poesia portuguesa em torno da revista Távola Redonda que fundou e de que foi o principal animador.
Durante quase 40 anos se manteve afastado do meio literário vianense, já que a sua primeira obra vianense é o livro Postais de Viana editado em 1986 pela Câmara Municipal.
Uma das características maiores da sua poesia é, porém, a duradoura corência que faz tão actuais os seus primeiros poemas como os de mais recente publicação, apesar de muito ter evoluído. Nos versos de 1946 encontramos ja patentes alguns dos tópicos que caracterizarão a sua poesia. É o caso disfórica de sentimentos e vivências. de facto Couto Viana objectiva na referência ao mundo exterior os sentimentos de que o poeta nele espelha.
Épico por inclinação parece que natural, António Manuel Couto Viana nunca deixou de fazer versos sobre a vocação heróica da Grei cujo destino sempre acompanhou comprometidamente.
Este livro de poemas, escrito na e a partir da sua experiência de internamento hospitalar, reflecte, apesar da posição épica que o faz analisar os comportamentos dos seus companheiros de enfermaria e da ironia (e auto-ironia) de tantas análises, é uma obra que vive do sincretismos espectacular onde o eu vê o mundo exterior a partir de si e serevê através dele.
Excertos
“Hospital”
A cura cinetífica do mal
É em prosa.
Mas veio visitar ao hospital
Uma rosa.
E neste abrir de noite que me resta
E agonia.
Veio aliviar a minha testa
A poesia.
(15.4.2000)
“Juizo Final”
E sempre a receber desinfecção geral,
Acépito, impoluto, todo branco,
Eis como deve ser um hospital
Da enfermaria ao bloco operatório e ao branco.
Mas este barracão onde jazo internado
Tem o chão aos buracos;
Baratas,pulgas,ratos surgem de todo o lado
E a louça sanitária está em cacos.
A cadeira de rodas não tem nada completo.
Mesas de cabeceira todas enferrujadas,
A tinta seca a cair do tecto.
As paredes fendidas fendidas e manchadas,
Ministro da Saúde:
Não te envergonha esta vergonha que aqui vês?
Despacha pra que tudo isto mude
Já é de vez!
(28.5.2000)
Avaliações
Ainda não existem avaliações.