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Joanas
A novela estrutura-se em três partes – A Casa, Sangue Sujo e Joanas. Mais do que uma novela é um texto de memórias, com carácter diarístico, em que ficção e real se fundem sem fronteira.
O discurso maleável e corrente remete-nos a todo o momento para as situações de um quotidiano familiar,marcado pelo pulsar das personagens, em momentos de afecto e de conflitualidade.
Prefácio
O que primeiro virá ao espírito do leitor ao ler a novela Casa é naturalmente Kafka. É natural. É o gosto de carimbar, de classificar, de ordenar, neste mundo felizmente irregular e desconexo. Mas peço perdão de me libertar das algemas com que me quiseram sempre reduzir. Encaixado, sim, mas na realidade, na rotina. Que remédio! Mas naquilo que é a própria raiz da liberdade, isso, mais devagar. Pois é. É que na altura em que a novela foi concebida, eu não tinha ainda lido Kafka. Nem mais.
Se o ilustríssimo e improvável leitor rebuscar no seu armazém repleto de nomes estranhos e sibilantes um deles para explicar a originalidade da mesma novela, ver-se-á em dificuldades a não ser se de repente se esquecer da sua tão preclara erudição e mergulhar nos mitos da sua infância. Então, sim! Então talvez possa aceitar que o das calças vermelhas tem as suas origens (muito remotas) no abominável, controverso e até, por vezes, muito simpático Satanaz. Porquê, aquela cabeleira tão grande? Para esconder as naturais saliências em tão eminente personalidade.
E não se pense que não tenho bem presente a circunstância que desencadeou a torrente de imaginação que enformou a narrativa. E vou citar nomes e factos. E vou mesmo ignorar a possível suspeita do leitor de pretensão minha (ou pior ainda, de presunção) de que falo destas minúcias biográficas porque me julgo um autor de futuro e consagrado nome ou coisa semelhante. Mas esse é um risco insignificante. Vamos ao que interessa.
Estava em Cardigos a passar as férias com a avó. A casa estava cheia de netos. Era ao cair da noite, próximo do jantar. Bateram à porta e alguém me disse que perguntavam por mim. Atendi. Era um dos filhos da prima Nazaré Nunes que viera na camioneta da carreira e vinha apresentar cumprimentos. Entendi eu que o que ele pretendia era dormir lá em casa e fui falar à avó. Mas, como quase sempre, ela pouca atenção me deu. Demais a mais com a azáfama do grande jantar de família que ia ser a seguir. Depois é que ela considerou a indelicadeza de obrigar o pobre do rapaz a fazer a pé os três ou quatro quilómetros (de Cardigos ao Casalinho, julgo eu) àquela hora tardia por caminhos desertos e de certo modo perigosos. Mas se nela foi preocupação momentânea, a mim deu-me que pensar. Imaginei-me na situação do moço e foi aí o nascimento da novela. Quanto à simbiose inexplicada entre realidade e fantasia que nela aparece sem qualquer justificação ou sugestão objectiva, andava-me então na mente. Cito uma passagem duma espécie de introdução que fiz a uma pequena peça minha dessa época dos começos de 50: ” A artificialidade e a falta de lógica dos diálogos são devidas à existência de dois planos diferentes nas relações das personagens: enquanto umas falam realmente, as outras é como se pensassem alto, sendo o pensamento conhecido do espectador.” (A Bela e o Mundo).
Aliás, dessa altura também, tenho alguns contos em que as barreiras entre a realidade objectiva e a subjectiva são pura e simplesmente ignoradas. Algumas vezes para obter uma simbolização não raro simplista e rudimentar, outras, como processo de expressão, processo aliás sempre incompreendido.
Lembro-me bem que nessa altura me guiava uma espécie de aforismo simplista que então inventei: “Um pensamento é tão real como uma pedra.” Assim é. Mas não tão palpável, é certo.
Não vou aqui discutir se é aceitável ou não tal processo de expressão porque só uma concepção muito limitada de arte é que previamente estabelece quaisquer normas. E se falo assim é porque não será difícil encontrar leitor à moda que a julgará doutro século por não estar escrita à Joyce ou, ainda melhor, à Beckett.
Excertos
Sempre quis saber porque é que a Joana se despediu tão bruscamente de mim quando a fui acompanhar à estação. Se foi com sacrifício que o fiz, porque é que ela me não ficou agradecida? Pelo menos… agradada? Mas quê? Com aquela cara de pau, olhou-me muito tesa e com um beijo sacudido e seco:
– Adeus!
E mais nada.
Que se há-de fazer? Os mal entendidos são tantos entre nós, que esta manifestação de mau humor não passa de um dos mil incidentes da sua má disposição permanente.
E talvez o respeitabilíssimo destinatário desta história queira vir comigo em busca dessa personagem que se sumiu no comboio e me deixou ali ao vento e à chuva, roendo-me por um escasso olhar ou um inocente acenar.
E se nós seguíssemos a Joana?
Já estão a meter-se comigo e a dizer-me que ela não tem nada de especial. E não. Então como é que eu vou sacar dela uma personagem se ela nasceu, casou e… morreu(?) como toda a outra gente?
Verdade, verdade, sempre me tiveram por um tipo um tanto atolambado quanto mais não fosse por escrever poemas e coisas. Se eu me agarrasse a um tratadão de ciência económica, seria outra conversa. Mas não só isso! São os disparates que passo a letra redonda com um desplante!
Mas então, a Joana está morta ou viva?
Vá que agora têm razão.
Pois é, respeitáveis senhores: quem escreve pode dar-se ao luxo de divagar pela sua fantasia e não ligar nenhuma a esse pormenor insignificante de a personagem estar viva ou morta. mas como essa tal Joana pode ocasionalmente conviver consigo (olhem agora onde eu me fui meter!) e não quero que me acusem de delirante forjador de pesadelos, tenho de dizer que a Joana esteve viva e depois morreu. Isso é o que acontece a toda a gente, não é?
Mas essa foi a primeira, aquela que era a minha respeitável sogra que Deus tenha em muito bom lugar. A Joana que acompanhei ao comboio é nem mais nem menos a minha viva e desconsolada mulher (mulher ou filha?) que indignada comigo (porquê?) me não deu a honra de um sorriso ou uma pequena atenção sequer, como vos disse.
Não estou baralhado, não senhor. Só a minha sogra se chamava Joana. Mas que importa isso? É que elas são tão iguaizinhas, santo Deus! É que… É que quando me fui despedir da minha filha, como vos disse, pareceu-me ver a minha mulher vinte e tantos anos mais nova, num arrufo de namorada (e que frequentes que eles eram!), zangada não se sabe porquê, nem a que propósito. Vim para casa a pensar que iria encontara o original, mais serena agora, mais fatigada ao canto dos olhos, mas mais humana também.
– Não lhe passou o amuo?
– Nem se despediu,quase.
– Já sabes como ela é!
Eu já sabia, sim. Era tal como a mãe que falava. Era tal como a avó que nos deixara. (…) pp.110/112
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