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ISBN | 989-20-0385-3 |
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Seleção de Textos |
Livro Branco (Um Temporário de Anabela)
Estamos perante um livro-testemunho: testemunho de vida que a Anabela deixou em alguns dos seus textos e testemunho dos seus amigos e de muitos os que com ela conviveram.
Depois do Prefácio, da autoria de José Luís Carvalhido da Ponte, segue-se uma fotobiografia redigida por uma amiga da Anabela, a professora Maria Gigante Abreu, e servida por inúmeras fotos, cedidas pela família, e variadíssimos excertos de depoimentos dos seus amigos.
É aqui que começamos a entender a Anabela: a sua coragem perante a dor, a sua alegria de viver, a sua serenidade, a sua beleza interior, o seu saber receber e os seus actos solidários.
Finalmente estamos perante o TEMPORÁRIO de Anabela. TEMPORÁRIO porque, como se lê no Prefácio, são pedaços de tempo e não todo o tempo de Anabela.
É composto por cartas, crónicas, poemas e reflexões várias.
São textos carregados de amor, umas vezes, de dúvida, outras, mas sempre acreditando que se a vida nos der limões amargos o mais sensato será fazer com eles uma refrescante limonada.
São, alguns deles, agradáveis exercícios de escrita.
Parece-nos um livro de cabeceira nos momentos de desânimo, de depressão, de contrariedades.
Prefácio
Três advertências
1.
A Anabela deixou-nos um conjunto de textos organizados sob o título de Livro Branco: oito crónicas, alguns pensamentos, algumas poesias, várias cartas.
Lêmo-los e relêmo-los. Textos bonitos. Bem escritos. Mensagens de coragem, de alegria, de serenidade, de amor à vida e aos outros.
Depois fomos ouvindo os pais, os amigos e todos quantos conheceram e conviveram com a Bela. E os testemunhos não se fizeram esperar. E com eles foi crescendo a imagem generosa desta jovem. E o nosso mais ternurento respeito pelo seu testemunho de vida tomou corpo e fez-se gente. E decidimos torná-lo público, que ninguém morre ou vive sozinho. Que, desde o Eu ao Mim e do Eu ao TU, todos somos vizinhos. Que crescemos em companhia e nos ritos da convivência apr(e)endemos os mitos de nós-todos. E depois ouvimos as mesmas canções. E degustamos os mesmos gostos. E olhamos os mesmos mares. E, já repletos de sentido, enveredamos, caminheiros da aventura, por trilhos por nós (re)inventados. E já não somos só nós, somos também eu. E assim nos multiplicamos. E aumentamos.
2.
Este legado da Anabela ficou um pouco disperso, ainda que sob o mesmo título: livro branco. Alguns dos textos estavam assinados, datados e até localizados; outros não. Assim: as crónicas apareciam todas seguidas e numeradas de I a VIII; depois vinham alguns pensamentos e alguns poemas e logo as muitas cartas.
Reflectimos bastante. Começámos por admitir que o melhor seria publicar tudo talqualmente a amiga nos havia deixado. Mas não. Não dava. Era muito material ainda que algum, nomeadamente cartas, fossem textos de circunstância, iguais aos que todos pronunciamos no clã. Foi então que, com a anuência da família, a professora Maria Gigante fez a selecção.
Por outro lado, as ideias repetiam-se e entre algumas crónicas, por exemplo, descobrimos vários anos de percurso.
Decidimos, então, que o melhor seria sequenciar os textos por ordem cronológica. Isso poderia permitir ao leitor acompanhar a Anabela durante algum do tempo dos seus últimos onze anos. Mas colocou-se-nos um problema: onde inserir os textos não datados? Novamente entrou em cena a Maria Gigante que, porque conheceu bem a amiga, sugeriu um ano para cada um deles.
E assim apareceu esta nova versão do LIVRO BRANCO da Anabela. Em jeito de diário.
Porque, contudo, às vezes entre um texto e outro decorrem anos e num ano se incluem várias crónicas e cartas e testemunhos, tomámos de empréstimo uma expressão de Mia Couto[1] e subintitulámo-lo O TEMPORÁRIO de Anabela Dias.
3.
Finalmente, a terceira advertência: a organização do livro.
Tínhamos os textos da Anabela, os testemunhos dos seus amigos e admiradores, muitas fotografias e a biografia que a Maria Gigante ouviu da mãe.
Como fazer?
A primeira ideia foi: um prefácio, depois uma fotobiografia, de seguida o Temporário e a encerrar os testemunhos. Mas loguinho se bafiou o pensamento por nos cheirar a armazém onde emprateleirávamos as dores e as alegrias desta amiga. Sim, que agora já não era apenas amiga da Maria. Era-o também nossa, que aprendêramos a conhecê-la.
Decretámos pois, sem outras delongas: primeiro um prefácio ou texto similar; depois uma fotobiografia reforçada com excertos[2] dos testemunhos; em terceiro lugar, o temporário.
E assim se fez.
E aqui se regista.
Para que conste.
Para terminar, e isto já não é uma advertência, antes uma evidência: como foi regenerador conhecer a Anabela Dias!
Meadela, 15 de Setembro de 2006
José Luís Carvalhido da Ponte
[1] Do conto “Os Amores de Alminha”
[2] Teve de ser assim. Foram muitos os excertos que a Maria Gigante recebeu e alguns muito longos e, quase todos, repetindo muitas verdades. A solução mais correcta pareceu-nos a adoptada: a cada testemunho fomos buscar o que julgámos mais oportuno e pertinente e apenas transcrevemos, na íntegra, aqueles testemunhos que ficariam, julgámos, truncados
Excertos
16 de Agosto, Braga
“A vida é um risco, ninguém disse que ia ser fácil, não te esqueças que um prazer adiado é um prazer perdido. Não deixes de experimentar as coisas. Se não as conseguires tão bem como os outros, paciência”
Olá mais uma vez!
Recebi a tua carta antes de te enviar a que eu já tinha escrito. Por isso, decidi acrescentar mais umas linhas ao “testamento” em resposta àquela que me mandaste.
Se calhar, quando receberes esta carta, vou já estar no Porto, no Instituto São Manuel. Temos mesmo que combinar um encontro. Depois telefono-te para programarmos essa saída. E já que estamos a falar de saídas, tenho uma coisa para te dizer acerca da tua semana de férias. Tens medo de quê, Helena? Não podes deixar que a esclerose te domine dessa forma; o teu médico não te proibiu de uma forma directa de ires à Tunísia. Quem sabe, melhor do que tu, aquilo que podes esperar do teu organismo? Nem o próprio neurologista sabe. Isto tudo é para ele um grande mistério. Eles apenas sabem a teoria, mas nós já sabemos que a prática, na realidade, difere muito da teoria. É tudo uma questão de poder da mente. Tens que saber controlar aquilo que sentes. Antes de ir para o Alentejo, pensei seriamente em cancelar a minha ida porque toda a gente falava do calor insuportável que lá se sente. Mas depois lembrei-me daquilo que o meu psiquiatra me disse: o que poderá acontecer lá, acontece aqui também, e lá também existem hospitais e médicos. Também eu não ia sozinha. Teria sempre alguém ao meu lado que me pudesse compreender e ajudar. Acho que é esse também o teu caso. O que é certo, é que fui ao Alentejo e adorei! Tentei não pensar muito no problema do calor, mas não o neguei totalmente. Quando achava que era tempo para parar um pouco, descansava um bocadinho. Quando fui a Bragança, estava com uma grande gripe em cima de mim, o Dr. Manuel Correia e outros médicos de medicina interna aconselharam-me a não ir. No entanto, arrisquei e adorei mais uma vez. Tens é que ir preparada para tudo que te possa acontecer. O meu conselho para ti Helena, é que não deixes de fazer aquilo que queres e gostas por causa de um simples sentimento de medo. A vida é um risco, ninguém disse que ia ser fácil, não te esqueças que um prazer adiado é um prazer perdido. Não deixes de experimentar as coisas. Se não as conseguires tão bem como os outros, paciência. Não deixes, por amor de Deus, que os bons momentos da vida passem por ti sem fazeres um esforço para os agarrares. Tive duas experiências que te podem servir de exemplo (já mencionadas), mas estou a ter outra : é o facto de ter arriscado vir para Braga viver sozinha. Pensei que não iria ser por falta de visão que não ia fazer aquilo que quero fazer. Se não consigo fazer as coisas da forma habitual, faço-as de outra. Tudo é possível.
Não quero com tudo isto dizer, que não deves ir à Turquia mas sim, à Tunísia. Apenas deves arriscar, deixares de considerar a tua realidade, ou seja, o facto de seres portadora de E.M.[1] Deixa de ir à Tunísia por outros motivos, mas não porque tens E.M. (E as pessoas que têm E.M. na Tunísia?)
Mudando de assunto: fiquei eufórica quando soube da notícia do medicamento novo! Quem espera, alcança…
Bem, Heleninha, vou terminar aqui porque, se não, não faço mais nada com o meu tempo.
Um beijinho para todos em casa e um abração para ti d’amiga.
Bela
[1] EM – Esclerose Múltipla
(S/D e S/L)
– a eternidade do momento doloroso
– a evasão para um mundo interior
Fechei os olhos e encostei a cabeça ao lençol branco, solto sobre o duro colchão plástico. As dores nas coxas flácidas e as nádegas húmidas já me provocam náuseas, já me rasgam a paciência. O negro tecido sintético da cadeira de rodas aquecia a pele ruborizada e o odor de uma fralda a pesar de urina teimosa enchia-me a cabeça de doença.
Esperava. Esperava com a cabeça sobre os braços nus, por cima daquele lençol branco, solto que ansiava sentir, limpo, envolver-me num sono narcótico que apagasse aquele momento, que destruísse aquele dia, que me devolvesse a esperança.
As outras pacientes esperavam também. Umas conversavam, outras liam e outras ainda, esperavam como eu, simplesmente. O tempo estagnava até às oito e meia da noite. O relógio adormecido acordava apenas quando, terminada a mudança de turno das enfermeiras, começava a chamada para o tão ansiado banho. Até às oito e meia o tempo era um momento apenas, carregado de vontades desesperadas. E, como são eternos alguns momentos… A dor pode arrastar um mero segundo infinitamente numa dimensão temporal que apenas a nós nos pertence. Um segundo carregado de dor é um segundo que não avança para se diluir noutro. É um segundo suspenso que dura um tempo imenso.
Pedira para ser mudada antes da hora do jantar. Em vão, como estava à vista. O trabalho era demasiado para duas enfermeiras apenas, àquela hora. Mudar uma fralda não se compatibiliza com a distribuição de medicamentos e a orientação dos regimes alimentares. Afinal, uma fralda molhada não incomoda mais ninguém a não ser aquele que se encontra embrulhado nela… E assim vai-se para o refeitório. Os primeiros dias são de uma violência arrasadora, pois da mente não evapora a vergonha mascarada de uma esperança louca de conseguir manter secreta aquela realidade. Os dias que vão seguindo vão pintando nos nossos rostos algo parecido a conformismo até que, nada podendo fazer para escapar ao inevitável, acabam por esculpir algo muito semelhante à indiferença num coração cansado de esperar.
Hoje, porém, sentia o corpo a esvaziar-se. A paciência que aprendera, a paciência que todos invejavam por acharem tão rara, deixava-me, escorrendo de cada poro. Sentia-me vazia da calma que me costumava fazer companhia, da calma que acariciava a mente quando o caos parecia ter-se instalado à minha volta.
Era dia de treino. Antes, então de me render aos prazeres de um chuveiro de água tépida, teria de esperar que o intestino se rendesse primeiro aos efeitos desobstrutores de um microclister. Enquanto esperava, outros iam tomando o seu banho no espaço rectangular ao lado do cubículo onde era depositada em dias alternados para o treino. Esperava, seminua, vinte minutos, quarenta minutos, uma hora…
– Chama por mim quando estiveres pronta – Dizia-me a enfermeira ou a auxiliar já com meia volta dada para prosseguir com a sua lida.
E, enquanto esperava, os apelos dos outros doentes enchiam-me os ouvidos, fazendo-me perceber que tão cedo não valia a pena chamar. Fechei os olhos mais uma vez e esperei.
Debaixo do chuveiro, enfim, tentava ignorar o odor fétido a fezes da doente anterior varridas para um canto, inspirando o perfume do sabão líquido que entornava nas folhas de esponja que não só me lavavam a pele, como também o espírito. A vergonha de um corpo nu, disforme e manchado diluía-se na frescura do perfume, no alívio que é de nos sentirmos lavados, limpos. Depois de fechar as torneiras, a enfermeira cobriu-me com um lençol que parecia ter sido acabado de passar a ferro e empurrou-me de volta à enfermaria onde já todas as camas estavam ocupadas, exceptuando a minha, logo à entrada. Sequei-me vigorosamente com o lençol e esperei que me ajudassem a subir para a cama. Uma vez seca, vestida e deitada, introduzi os “phones” em ambos os ouvidos. Acabara de fechar a porta ao mundo.
Quando estão cegos os nossos olhos e surdos os nossos ouvidos, tornamo-nos soberanos de um universo que só Deus conhece. O mergulho nos oceanos profundos e secretos, e a escalada das montanhas e rochedos misteriosos deste universo é a mais ousada das aventuras. É uma viagem pelos sons que nos habitam e pelas cores que nos pintam de contrastes psicológicos e emocionais. É uma brincadeira de garotos que gritam com euforia a cada descoberta e que choram com cada desilusão. É uma viagem em que compreender, aceitar, melhorar ou rejeitar as melodias e as pinturas que nos decoram e nos edificam são decisões que nos atiram à vida ou nos retiram dela. É o conhecimento do nosso universo, é o conhecimento da nossa verdade.
Não estava já no hospital. Estava já longe das pessoas, dos objectos com cheiro a éter, a doença. Já não existia o barulho da vida e nem sequer o frio e o calor. Já só existis Deus e a tranquilidade do meu universo. Adormeci.
Deixei de ser corpo. Deixei de ser vítima de um espelho acusador. A cegueira veio domar os desejos de um corpo perfeito, de uma imagem escultural, que inevitavelmente, deixaram, paulatinamente, de ser possíveis.
3 de Dezembro, Viana do Castelo
Introspecção.
O querer conhecer-se através do Outro.
São raras as oportunidades como esta. Falo da oportunidade de descer em mim e mergulhar nas aguas turvas e turbulentas que me enchem de certezas incertas.
Hoje desci. Não sei porquê, mas desci. E, ainda bem, pois lá do fundo apeteceu-me estender-te a mão, pedindo-te que a segures contra o teu peito e me fales a Verdade… a minha verdade que insisto esmagar com inútil conformidade. Fala-me de mim. Sinto que me conheces melhor do que eu própria. Quero conhecer-me nas tuas palavras, quero compreender os meus gritos no teu silêncio, quero aceitar as minhas lágrimas no teu sorriso… Fala-me da menina que se escondeu da mulher que todas as certezas parece ter, de tudo e de nada… nada…
7 de Dezembro, (S/L)
O Canto do Silêncio
Silêncio na mente… paz no coração
Ofereceste-me um canto…
Cantaste-me o silêncio,
E o silêncio em mim gritou a tua voz.
Ofereceste-me um canto…
Em cada palavra, em vão me escondi…
Descobriste-me em cada pausa brevemente eterna.
Ofereceste-me um canto que me despiu;
Um canto que me feriu no peito
Com a lança de uma verdade que não aceito.
Ofereceste-me um canto que os meus lábios cerrou e calou,
Que o meu sangue aqueceu
E mais uma certeza me deu…
Que o silêncio compreende mas também ofende;
Que o silêncio consente mas também mente;
Que o silêncio aceita mas também rejeita;
Que o silêncio fala…
No silêncio desenhas o teu desejo
E apagas a saudade de um beijo;
No silêncio sentes a dor que ninguém sente;
Sangras o sangue que ninguém sangra;
No silêncio debates, discutes e questionas;
No silêncio não descansas porque no silêncio avanças;
No silêncio não repousas porque no silêncio tu ousas;
No silêncio não calas porque no silêncio tu falas!
Ofereceste-me um canto
que com palavras me cantou o silêncio.
Falaste-me do silêncio que habita a minha mente
E que o meu coração em paz sente.
Cantaste o canto que em mim canta.
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