Prefácio
A «Aurora do Lima» de 14 de Junho de 1935
A conferência do Sr. Capitão Ernesto Sardinha, cujo resumo damos por sínteses tanto ou quanto aproximadas do belo trabalho, é, acima de tudo, uma peça literária de suma valia, construída com amor e convicção.
Não sabemos se há quem discorde da orientação assim dada. Nós, porém, concordamos plenamente.
O assunto militar, despido de espiritualidade, bravo e árido, isto é, tratado cientificamente, é de facto pouco humano. Não porque ele não contenha em si aquela soma de sentimentos que no-lo apeguem à inteligência e ao coração. Mas ficaria simplesmente no nosso auditivo, se uma prosa dramática lhe não imprimisse o aspecto patético. Ernesto Sardinha, com uma visão inteligente, quere-nos parecer que pensou como nós e foi arrancar à sua índole de artista aquela porção de espiritualidade que fazia falta, para amassar em humanidade o que seria apenas um mero caso pessoal.
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Não foi, portanto, literatura, o que o autor quis fazer. O que Ernesto Sardinha soube fazer, foi animar de um sopro anímico o drama eterno da humanidade.
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A descrição do combate primitivo e singular, logo no início da conferência, é qualquer coisa de perfeito. Há ranger de dentes, unhas crispadas, visões de ferocidade, nessa descrição magistral.
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A narrativa da batalha de Canas, dita com verdade, é igualmente perfeita. E assim por adeante, até à sugestiva descrição dum combate junto dos muros de Viana.
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Maravilhou-nos a invocação a Viana e aos seus penates, cujas sombras a horas mortas vagueiam nos ângulos das cangostas de intra-muros, donde se abarcam ângulos evocativos, recantos do passado, pedras de velhas lembranças…
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Sem lisonja e obedecendo a um sentimento de pura justiça, devemos dizer isto: poucas vezes em Viana nos tem sido dado ouvir uma conferência de tão apurado quilate e de tão formosa fábrica, como esta do ilustre poeta vianês que é o Sr. Capitão Ernesto Sardinha.
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Em outro lugar inserimos Um Episódio local, curioso extracto da primorosa conferência.
Excertos
Do que não há dúvida (disso estou convencido) é que, à sombra das muralhas ou no cotovelo das ruelas, os componentes do terceiro-estado vianês se confidenciavam a sua inclinação, a sua adesão, o seu apego à causa do Mestre de Aviz; a meia voz e circunvagando os olhos a cada passada estranha, por causa do alcaide, Vasco Lourenço de Lira, e de seus besteiros e familiares.
Quando chegou o rumor de que Nun’Álvares, com o seu pendão e hoste, ia atravessar o Lima e pôr pé no alfoz, tangeu o sino a rebate, trancaram-se as portas e postigos da muralha, congregou-se a milícia do concelho, e os adarves e as nove torres apareceram eriçadas de bestas e partasanas. Era a guerra! Na vila, sim, o coração do povo batia pelo rei português; porém a lei, a disciplina constrangiam-no, sob a autoridade férrea do alcaide, a voltar-se contra a sua própria causa, violentando esse sentimento da nacionalidade, vivo então e pujante na arraia-miúda, que obrava por instinto e por impulso e desconhecia preitesias e menagens.
Mas não foi tanto assim! A uma correria de um troço do condestável sobre uma porta, voa o alcaide para essa banda com os seus fiéis besteiros; silvam os virotes e cai por terra o alferes de Nun’Álvares, o ruivo e espadaúdo Frize. Entretanto parte da milícia, aproveitando-se do afastamento de Vasco de Lira, conchava-se rapidamente e, admirável, abre uma das portas, parte em tropel a oferecer-se a Nuno, e o brado, que lhes solta o peito ofegante, é esta senha gloriosa, que tem oito séculos e deu volta a todos os paralelos: «Portugal! Portugal!»
Vasco Lourenço cerra os dentes e crava os punhos enraivecidos sobre o granito do parapeito. Acirra o combate; salta aqui, escoa-se para acolá; expondo-se, enquanto anima os homens, que lhe ficaram, um tiro de besta vem prostrá-lo, gravemente ferido. Cai no seu posto, com honra militar, façamos-lhe essa justiça; mas a bandeira de Nun’Álvares, ainda há pouco amarfanhada no chão, este vingada!
Derrubado o alcaide e levado em braços, inanimado, não há senão dar largas ao sentimento e executá-lo: e o sentimento, que ali reina, é o da Pátria independente. Franqueiam-se as portas da vila; as mulheres saem, transfiguradas, das suas casas, sobre cujo sobrado ainda há pouco soluçavam de bruços; os sinos lá fora repicam; um frémito de alegria percorre os corações; e Nun’Álvares, risonho, apeia-se na lagem da praça de armas, enquanto a turba grita, frenética, vibrante, olhos em lágrimas: «Real, real! Pelo Mestre de Aviz, rei de Portugal!»
Este episódio tão simples na sua essência, ao qual a minha fantasia, senão o meu instinto, deu um sopro de vida – tem o seu reverso. Há um monumento literário, como VV. Ex.as sabem, consagrado à história de Viana. Pois bem, ou antes, pois mal, o sucesso é ali encarado precisamente ao invés. Devo ressalvar, primeiro que tudo, que não intento sequer beliscar a alta envergadura mental do erudito, do castiço, do filósofo da história. José Caldas foi enorme. Mas est modus in rebus. Se eu quero contemplar um edifício, não vou propositadamente mirá-lo pelas traseiras, onde está a roupa a lavar, onde está a corte, para onde dão a cozinha e outras dependências menores. Não! Olho-lhe a fachada!
Mas nesse passo da «História de um fogo morto» nem sequer há desvãos a ocultar! A glória é para o alcaide. Seja! Já mesmo como combatente lha não regateámos. Todavia, sem que se possa explicar porquê, todo o opróbio cai, infamante, sobre as faces do terceiro-estado: Comodistas! Pulsânimes! Covardes! Não pode ser! Não é assim! Os homens são os mesmos que há ainda pouco vimos em Navas de Tolosa e vão de aí a dias bater-se em Aljubarrota!
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