Prefácio
“Com a publicação da Lei nº 13/85 de 6 de Julho, sobre o Património Cultural, gerou-se uma onda de protesto em algumas camadas sociais do país, muito especialmente entre os cristãos que, pela voz autorizada dos seus bispos, manifestaram alguma discordância, não quanto aos grandes parâmetros subjacentes à Lei, que são positivos e necessários, mas quanto à filosofia ética do direito de propriedade que parece depreender-se de alguns dos seus artigos, apontando para uma concepção estatizante desses bens patrimoniais. Sabe-se que uma parte considerável do Património Cultural pertence à Igreja que o guarda e utiliza, ainda, nas funções litúrgicas. Outra parte foi-lhe arrancada pelo Estado, quer em 1910, quer em períodos anteriores e que, por motivos vários, ainda não lhe foi restituída, constituindo hoje património do Estado, se já não passou para a mão de particulares, por uma insignificância. Há, ainda, uma parcela apreciável desses bens que o Estado classificou de “monumentos nacionais”, de “interesse público”, em relação aos quais a Concordata de 1940 é muito clara e precisa. Perante estas situações, um tanto exóticas para a época em que se geraram, embora nos pareçam agora normais, sobretudo após a sua regularização pela Concordata entre a Igreja e o Estado Português, em 1940, não admira que a Igreja reaja, frente a uma lei, tão diluída nos seus contornos, tão confusa na definição do direito de propriedade e tão insistente na inventariação de bens que as entidades proprietárias já arrolaram muito antes de o Estado manifestar tal preocupação. Não se julgue que esta reacção da Igreja seja imatura, ou sem fundamento. Apoia-se em pressupostos que se geraram no decorrer dos séculos, quando o Estado, para recuperar prestígio, ou pagar dívidas, ou ainda para conceder benesses, não hesitou em esbulhar a Igreja dos seus bens, pondo-os, em seguida, em hasta pública, ou transformando-os em património da Nação. Desde os primórdios da nacionalidade, houve quase sempre contendas entre reis e bispos, a que não era alheio o direito de propriedade dos bens eclesiásticos. D. Dinis herdou dos seus antecessores uma série de problemas relacionados com abusos desta natureza, tentando saná-los pelo recurso a várias concordatas. Nem por isso, os problemas entre a Igreja e o Estado se desvaneceram. Logo a seguir, no reinado de D. Pedro I, surge a questão do «beneplácito régio» que, pese embora a reacção de alguns bispos, prevaleceu, de forma mais ou menos agudizada, nos reinados seguintes, reaparecendo no século XVIII, como imposição arbitrária da Coroa. Esta lei proibia a Igreja de publicar quaisquer documentos, dimanados da Santa Sé, sem prévia autorização régia. Se foi, de certo modo, benéfica para os fiéis, sobretudo no grande cisma do Ocidente e na identificação e rejeição de alguns documentos sub-reptícios que alguns prelados forjavam para fazer valer direitos e privilégios, nem por isso deixou de molestar o direito fundamental da Igreja na sua comunicação plena com a Santa Sé. Outra fonte de conflitos residia na posse de bens e nas imunidades eclesiásticas. Os bens foram-se acumulando nas igrejas catedrais e nos conventos, graças a doações dos fiéis, ou da Coroa. Se estes bens contribuíam para que as instituições eclesiásticas satisfizessem os pesados ónus para com a sociedade, também geraram mau estar, ambição e cobiça da parte de muitos leigos e de alguns soberanos. Quanto às imunidades, o clero estava isento do serviço militar e do foro civil. Todas estas questões que punham em conflito os dois poderes – civil e eclesiástico – processaram-se, durante a Idade Média, a nível de reis e bispos, passando depois para as esferas superiores de Igreja-Estado, assumindo a Santa Sé um papel relevante na sua solução, quase sempre ratificadas por um documento papal. Contudo, a Santa Sé nunca assumia uma decisão definitiva, sem primeiro ter a garantia do apoio dos bispos portugueses, considerados colegialmente. Foi assim que se resolveram alguns problemas a partir do reinado de D. João I e em épocas posteriores, como nos séculos XVIII, XIX e XX, em que se extinguiram ordens religiosas com a intenção declarada de reaver os seus bens, ou se apelou para um poderio, por vezes imaginário, da Igreja, a fim de a espoliar do seu património. Mas, se de todos estes actos, mais ou menos arbitrários, praticados por um Estado que se julgava todo-poderoso, a Igreja saiu mais livre e mais purificada nos seus objectivos, já não é muito crível que tal aconteça quando é atingida naquilo que constitui grande parte da sua razão de ser e do fundamento da sua acção: o seu património cultural. É que a Igreja, nascendo no meio de um mundo em decadência, injectou-lhe nova seiva e conferiu-lhe os grandes princípios e os nobres anseios que tornam livre, pacífica e fraterna uma sociedade. Após muitos anos de luta, conseguiu realizar a síntese da cultura pagã e da cultura cristã, criando a civilização ocidental. Depois, foi a única instituição que resistiu à hordas bárbaras, amansando-lhes os hábitos e integrando-os na cultura ocidental. Com o apelo à humildade e à mansidão, adoçou os costumes e os ímpetos selvagens dos cavaleiros medievais, incutindo-lhes bons sentimentos e nobres ideais de defesa dos mais pobres e dos mais fracos. Espalhando mosteiros e conventos por todos os lados, conseguiu educar o povo no trabalho, na dedicação e na fidelidade aos grandes princípios que orientam a sociedade. As primeiras escolas do ocidente europeu, bem como doutras partes do mundo, que viram a luz da civilização, só nos tempos modernos, são da sua inteira iniciativa e responsabilidade. Por toda a parte fomentou o progresso, não como um fim em si mesmo, mas como um meio para atingir o equilíbrio e a plena realização dos homem sobre a terra. Tudo isto, porém, exigia meios e instrumentos materiais e espirituais, que formam o seu húmus cultural – monumentos, imagens, quadros, alfaias, utensílios, livros, documentos, etc., que hoje formam um espólio apreciável, espalhado por cidades, vilas, aldeias, quando não está ainda em funções litúrgicas, ou não enche museus, arquivos e bibliotecas. A diocese de Viana do Castelo, que se circunscreve à região do Alto Minho, possui também um património cultural e artístico que os cristãos foram criando através dos tempos e que, melhor ou pior, se encontra defendido. São igrejas e capelas que mãos calejadas de alvanéis, sem grande formação artística, foram erguendo por incumbência de mosteiros, paróquias ou simples benfeitores. Não são muito avantajadas na sua estrutura arquitectónica, nem muito perfeitas na sua gramática decorativa, mas podemos dizer que são a pura expressão da fé e da arte dum povo que nunca foi rico de bens materiais, mas que sempre manifestou uma grande riqueza espiritual. Desde o românico ao neoclássico e ao romantismo, passando pelo gótico-manuelino e pelo barroco, os cânones por que se regeu a sua construção mantiveram-se à margem das grandes correntes artísticas do País. Tirando a Matriz de Caminha, de feição renascentista, bem enquadrada na vertente plateresca, a Igreja de S. Domingos e o Hospital de Viana, retintamente maneiristas, a Matriz de Viana e de Ponte de Lima, com formas mal definidas como acontece nos estilos de transição, a Igreja das Malheiras, com uma fachada perfeitamente barroca, e uma ou outra capela românica de cariz regional, todas as outras construções são de expressão rural. Mas nem por isso deixam de ter interesse nesta época tão voltada para a arte do povo. Se mais não fosse, bastavam-lhes a carga de sentimentalismo que as rodeia, a fé acendrada que as inspirou e a expressão plástica, de cariz popular, que presidiu à sua construção. Mas o que mais nos impressiona, neste Alto Minho, é a escultura barroca dos retábulos «joaninos» e das imagens de santos, quase todas de madeira. Para aquilatar o valor artístico, a perfeição do talhe e o sentido histórico de que se revestem essas imagens, basta referir que numa Exposição Mariana realizada em Braga, em 1954, das 392 imagens expostas, 154 eram do Alto Minho. Algumas de pedra, sobretudo as mais antigas, quase todas de madeira, expressando um barroquismo característico nas suas linhas plásticas, essas imagens expostas constituíam um espólio admirável, que esperamos regressem quanto antes aos locais de origem, para que ocupem o lugar que lhes compete e possam contribuir para o enriquecimento do património escultórico da Diocese de Viana do Castelo. O objectivo que preside a este pequeno estudo sobre o nosso património histórico, artístico e cultural reside na avaliação e consequente consciencialização dos portugueses, especialmente da comunidade católica, em ordem à defesa dos seus bens patrimoniais, empenhando-se, cada vez mais, no seu estudo, publicação e valorização sem o destruir ou deteriorar.”
Excertos
“1- A IGREJA PROMOVE A ARTE
Prescindindo de uma certa interpretação relativista da história, que vê por detrás de todos os acontecimentos causas segundas que em nada valorizam a análise dos factos, nem a imagem das personagens neles comprometidas, temos de convir que a igreja foi a principal promotora da Arte em todos os tempos, quer inspirando obras, quer fazendo encomendas, quer ainda fomentando uma «praxis» litúrgica que exigia toda uma infra-estrutura de monumentos, imagens, pinturas, objectos, etc.
Nos primeiros tempos do cristianismo, estando a igreja ainda muito entrosada na mentalidade judaica que não admitia imagens sensíveis do Deus invisível, e também por um certo decoro em relação às religiões pagãs que tinham como principal suporte, além da mitologia, um conjunto de estátuas que acabaram por ser objecto de idolatria, a arte cristã é quase toda simbólica e muito limitada na sua expressão formal. Esta arte simples exprimia mais conceitos do que realidades concretas. Tirando uma ou outra imagem pintada (a Virgem, o Cristo com o cordeiro, as orantes, etc.), quase sempre de inspiração oriental e colocadas nos sítios mais recônditos das catacumbas, toda a expressão plástica da primitiva arte cristã resume-se em símbolos (peixe, pomba, cordeiro, etc.), não totalmente alheios a todo um conjunto de sinais que vinham da antiguidade clássica.
Quando o imperador Constantino, em 313, deu a paz à igreja, surgiu toda uma arte monumental, reflectindo temas e normas da arquitectura clássica. São as basílicas cristãs, umas construídas de novo e outras reaproveitadas dos velhos tempos, com as adaptações necessárias ao novo culto.
Ao lado destas igrejas amplas para albergar o povo durante os actos de culto, apareceram baptistérios e capelas tumulares, geralmente de planta centrada, isto é, em forma de cruz grega (quatro braços iguais).
Esta arquitectura de tradição clássica, espalhou-se por todo o império do ocidente, prevalecendo até à Baixa Idade Média (século XI), com pequenas «nuances» que lhe advieram do império bizantino minimamente afectado pelas invasões bárbaras e árabes, ou da reforma carolíngia.
O maior contributo para a arte monumental e escultórica verificou-se, sem dúvida, na idade média com o românico e o gótico.
Com o estilo românico, mais rural e monasterial, ao contrário do gótico que era mais urbano e centrado nas catedrais, deu-se a explosão artística jamais igualada em épocas posteriores.
O românico, sendo uma revivescência de formas romanas, com influências bizantinas, árabes e regionais, criou as grandes abadias do ocidente, muitas das igrejas e catedrais, algumas igrejas de centros urbanos e essas admiráveis capelas situadas no cimo dos montes ou no fundo dos vales, cuja beleza e encanto continuam a desafiar a imaginação do homem moderno, mais voltado para o quotidiano, o imediato e o material da vida.
O estilo gótico nasceu com as cidades e para as cidades. Toda a sua expressão artística anda mesclada do esforço indómito desse extracto social, que enriqueceu à custa do artesanato e do comércio, e que ficou na história com o nome de burguesia, coadjuvado pelo povo, simples e humilde, que compartilhava com ela o orgulho de possuir a igreja mais alta e mais ampla da região.
Todas as críticas que se fazem em determinados sectores do pensamento moderno, a este espírito mais voltado para o céu do que inclinado para a terra, além de não terem consistência e de serem contraditadas pela própria experiência artística, não valem uma dessas catedrais, cujo esplendor continua a ofuscar muitas das expressões formais da arte contemporânea.
Enquanto da banda de cá dos Alpes (França, Espanha, Portugal, etc.) se esgotavam as últimas formas do estilo gótico flamejante, na Itália ressurgia o Renascimento (renascittá, como lhe chamou no século XVI Vasari), no qual transparecia, não o sentido sobrenatural do mundo e da vida, como no gótico, bem expresso na verticalidade das formas artísticas, mas o sentido humano e terreno das coisas.
O estilo renascentista, que presidiu à construção de igrejas e de palácios importantes, em Florença, Veneza, Roma, etc., era o resultado duma mentalidade humanista, iniciada muito cedo na Itália, inspirada na literatura e na arte clássica.
Além de imitarem as formas antigas, os artistas imprimiram às suas obras o sentido da horizontalidade, em detrimento da verticalidade, os elementos decorativos tornaram-se mais funcionais, respeitaram-se as regras da proporcionalidade e adoptou-se a perspectiva, como forma de escalonar a realidade na sua expressão plástica.
Todo este movimento, que mais tarde se propagou a toda a Europa, já em formas mais desenvolvidas e mais arcaizantes, se pretendia no campo das artes o estudo da natureza e do homem, como medida de todas as coisas, nunca se apresentou como uma alternativa à concepção cristã do mundo e do homem, nem muito menos contra a igreja e a religião. Pelo contrário. Quase não houve nenhum artista do renascimento que não se deixasse inspirar na arte religiosa, legando-nos, em todos os domínios, obras de extraordinária beleza.
A própria igreja cedo baptizou este movimento humanista e inovador, encomendando algumas obras que, actualmente, enchem a Pinacoteca do Vaticano e outras colecções de igrejas, capelas e mosteiros. Talvez Miguel Ângelo, Rafael, Leonardo da Vinci e tantos outros pintores, escultores e arquitectos nunca tivessem atingido a aura da glória sem uma «Ceia», uma «Capela Sistina», um «Moisés», uma «Pietá», uma «basílica vaticana», etc.
Porém, a partir dos princípios do século XVI, as formas artísticas alteram-se, a proporcionalidade rompe-se, o desequilíbrio instala-se. É o maneirismo em que os elementos decorativos retomam a sua função, que consiste em adornar, os frontões interrompem-se para albergar um medalhão, uma cartela ou um adorno qualquer, a planta dos edifícios assume a forma de cruz latina, as estátuas abandonam a rigidez clássica para se tornarem mais flexíveis e as pinturas começam a projectar-se na paisagem.
É o início do barroco que atingirá o auge, nos meados do século XVIII, com o rococó.
São deste período muitas igrejas, a princípio austeras e pesadas, como a regra jesuítica, depois leves e diáfanas como um bouquet de flores.
Em Portugal, surgem os altares de talha dourada, gorda, com ramos de parra e anjinhos à mistura nas colunas salomónicas. É também o período mais brilhante da nossa escultura religiosa. Então, o Alto Minho possui uma riqueza incalculável de imagens desta época, todas elas bonitas, vaporosas, de mantos desfraldados a um vento invisível, místico.
Depois do barroco, surge o neoclássico numa tentativa de regressar aos tempos antigos e renascentistas, para contrabalançar o exagero das formas decorativas usadas no final do barroco. Mas em vão, porque Portugal, se teve alguns estilos bem definidos, foram o românico e o barroco, como afirma Reinaldo dos Santos.
De qualquer maneira, se olharmos muitas igrejas das nossas aldeias e, até mesmo, das vilas e cidades, verificamos que todas elas propendem para a simplicidade de volumes e de formas decorativas. A imaginária é menos abundante, até porque perdeu, em grande parte, a sua originalidade artística, não apresentando outra coisa senão cópias fiéis de modelos estereotipados.
De qualquer maneira, lançando um olhar retrospectivo para este panorama da expressão artística, verificamos que a Igreja, no mundo e em Portugal e, mais concretamente, no Alto Minho, é a grande responsável por um património valioso, que criou e que procura defender a todo o transe.”
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