Excertos
Excerto 1
«(…) peça o leitor para entrar e entre (…) pode estacar sob o arco de pedra, confinante com a parada (…) mesmo na frente, ao nível do primeiro andar, um nicho com Cristo crucificado. Não é um nicho rudimentar nas proporções ou na apresentação (…) este é amplo e rasgado, alto por certo como um homem, largo como dois braços estendidos, mostrando compostura em sua fábrica: exibe um debruado de cantaria a rematar com ornato na soleira, resguarda-se com uma porta toda ela envidraçada e pompeia além disso forrado interior a tábuas pintadas de azul celeste com matiz de estrelas de oiro; não lhe falta ademais uma lanterna a cada banda, erguidas em varão serpentinado, e como vistoso remate, cativante pormenor decorativo a sobressair das paredes caserneiras – a graça de um tejadilho privativo, pirâmide quadrada avançando como dossel. Dentro, um crucifixo de madeira.
Em quaisquer outras circunstâncias de local a existência deste tributo de piedade nada conteria de extraordinário (…) mas aqui, na parada de um quartel, é deveras surpreendente, e para mim, confesso, até se torna encantador, como motivo estético não apenas, oásis único para a vista de quem tenha de demorar adentro da parada, mas também como relíquia de antepassados, testemunho patente da sua maneira de ser, desse exacerbado sentimento religioso (…)
Como é de preceito regulamentar em quartéis – “cada compartimento terá, na verga da porta, escrito o fim para que se destina” – não poderia o nicho exceptuar-se e, obedecendo à regra, lá está a inscrição, não na verga, onde se apagaria à sombra do telhado sobranceiro, mas em evidência na soleira, em negros caracteres pintados, que dizem exactamente:
O SR. JESUS DOS QUARTEIS
DE VIANNA
ANNO 1790
Se a tinta não é da primitiva, vou jurar que os caracteres são os mesmos ali postos há cento e quarenta e seis anos (…) O Sr. Jesus! Coisas de tempos idos! Aquela abreviatura, SR., não é certo que atrai irresistivelmente um sorriso, não de mofa incivil ou soez, mas de complacência veneradora?
Mas vamos à data (…) prontamente estabelecemos que a inserção do nosso nicho militar foi parte integrante do alçado projectado para a construção do quartel. Seria anterior a esta criação da imagem militar sob o invocativo de Senhor dos Quartéis? Ou surgiria a ideia de o instituir como patrono do Regimento de Viana precisamente do facto de se construir um quartel novo?»
Excerto 2
«(…) Mas sobretudo era empolgante a absorção religiosa, a qual, à própria época da fundação do quartel de Viana, se condensa, adentro dos negócios militares, na célebre circular expedida às tropas, após a entronização de D. Maria I, determinando que “não deixasse de pontualmente rezar-se o terço em todos os quartéis!”»
Excerto 3
«E assim aquele crucifixo que ali está, fez toda a Guerra da Península, levado deste quartel como talisman da Infantaria de Viana para as incertezas e perigos duma campanha contra as mais temíveis tropas desse tempo. Sobre aquela imagem convergiram os olhares suplicantes, as preces e os rogos do Regimento do nº9. Ela foi, no decorrer de quatro anos. a fonte da esperança e da resignação nas fileiras desse distinto Regimento e, pela crença no seu poder sobrenatural, pela confiança na sua protecção, decerto criadora d estímulos e de afoitamentos. Esteve no Buçaco, em que o 9 se estreia brilhantemente, participando dos contra-ataques, que caracterizaram a batalha; conheceu os entrincheiramentos de Tôrres Vedras; estacionou em povoações da Beira; teve por cúpula estrangeiros céus, alçada em altares de circunstância durante as missas campais rezadas de lés a lés da Espanha e na própria Navarra francesa.»
Excerto 4
«Não sei se ainda existe no quartel do 3 um velho livro de escrituração respeitante ao Senhor dos Quartéis. Qual seria o recheio daquele manuscrito, que apenas uma vez e por acaso se me deparou? (…) só conservo esfumada reminiscência de conter o lançamento de receitas e despesas. (…) se a caixa de esmolas existiu, como é possível, foi suprimida (…) se conclui que as dádivas pecuniárias eram recebidas e arrecadas, do mesmo passo se verificando a fé na imagem e a sua notoriedade; e além disso se legitima a suposição de que entidades haveria, expressamente designadas, a quem por uso ou estatuto estava confiada tal administração. Formar-se-ia após o regresso da Guerra Peninsular, e sob a influência ou em concordância com as devidas homenagens ao padroeiro, alguma irmandade privativa dos militares da Infantaria local ou similar organização? Porventura, o cartapácio desse a resposta ou proporcionasse achegas para inferi-la afirmativamente.»
Excerto 5
«Dádivas em azeite, dessas me recordo serem frequentes inda na década passada (…) bastas vezes vi, no transcurso de anos, alumiar o nicho com azeite ali deixado por mãos devotas, atestando assim a subsistência do culto por este Cristo militar.(…)
A um voto de dura execução assisti eu, cuja notícia aqui tem o seu lugar. Uma tarde, em que estava de serviço, veio onde a mim um graduado, já então na reforma, pedir autorização para que a mulher, depois do toque de silêncio, entrasse no quartel, pois queria ela desobrigar-se nessa noite de promessa feita ao Senhor dos Quartéis e só a hora morta lhe convinha vir cumpri-la. Há que respeitar a crença alheia, quando é sincera e desarmada de agressividade, e dar-lhe até caminho franco, quando meramente se confina adentro do campo espiritual. Toda a intolerância é condenável e deprimente. Contrariar o desígnio da mulher, movida pela fé religiosa de que estava penetrada, seria mesquinho, senão soez, embora os escrúpulos da consciência tivessem salvaguarda no regime interno do quartel. Que viesse e quando quisesse, pois, como de costume, só me deitaria tarde.
Já onde ia o toque de silêncio, quando, tendo-me encostado à ombreira da janela a olhar, absorto, o fronteiro largo, me prenderam a atenção dois vultos, que por ele vinham descendo: um de homem era, mas o ouro não deixava a escuridão da noite perceber de pronto o que fosse, da altura de criança; criança, porém, não devia ser, pois, ainda que menina, se lhe haviam de conhecer as pernas, e é que, a acirrar a curiosidade, a marcha de tal corpo amputado era lenta como a do caracol. Não tardou meio minuto que decifrasse aquele mistério; era o cumprimento da promessa, e agora se explicava a escolha da hora adiantada, à qual com probabilidade ninguém ou quase ninguém se encontraria. Vinha a mulher de sua casa, à Portela de Baixo, em direitura à porta do quartel, fazendo todo o trajecto a arrastar os joelhos, penosa, dolorosamente pelo chão. Intimamente indignei-me com esta prática bárbara, que só poderia agradar a um deus truculento, engendrado à margem da característica bondade do cristianismo; porém decorridos minutos, ao ver a penitente transpor o arco da entrada, curvado o busto para diante, o chale sobre a cabeça, rebuçando-a, rastejando com intercadências, que traduziam sofrimento, sofrimento – fiquei com os olhos humedecidos. Nenhuma vantagem advinha para o semelhante daquela tortura voluntariamente imposta e interrogo-me a mim próprio sobre o porquê deste rebate de comoção. Debalde, porquanto a sensibilidade escapa-se a rebuscas analíticas. Sei apenas que todos os sacrifícios são admiráveis, partam de quem partirem, seja qual for o sentimento que os determina; e que alguns, vistos, contados mesmo, dimanam de si a força de inevitavelmente nos enternecerem.»
Avaliações
Ainda não existem avaliações.