Prefácio
De Avestruz a Cotovia
A sorte literária de António Manuel Couto Viana não tem sido a melhor, nem tem sido a merecida. Autor de uma extensíssima obra – só na poesia, cerca de quarenta títulos -, surge quase sempre citado como companheiro de David Mourão-Ferreira nas folhas de poesia Távola Redonda, como praticante de um lirismo classicista, e como poeta nacionalista, quando não «fascista». Assim, acaba consecutivamente esquecido ou rasurado na sua individualidade. Além do mais, a obra não está acessível: as elegantes edições da Verbo mal se encontram em alfarrabistas, e vários dos volumes posteriores foram publicados em editoras pequenas ou confidenciais. Essa lacuna foi colmata com o aparecimento de Sou Quem Fui, antologia pessoal que o autor organizou para as edições Ática em 1998. Mas a fraca divulgação desse volume e uma selecção pouco sensata de poemas anularam os efeitos correctivos que teria tal edição. Agora, quase em simultâneo – e de certo modo para comemorar os oitenta anos do poeta, celebrados em 2003 -, surge a poesia completa na Imprensa Nacional-Casa da Moeda e a presente antologia, com o inédito O Velho de Novo. Estamos, no volume que o leitor tem entre mãos, a meio caminho entre obras completas e obras escolhidas: trata-se de uma selecção de alguns dos títulos de Couto Viana que ilustram épocas e feições da sua poesia e permitem leituras cronológicas e evolutivas. A essa antologia alargada, o autor juntou, como se disse, um original, quase em jeito de testamento. Façamos então uma introdução aos vários núcleos de poemas, dizendo, a propósito de cada um, algumas palavras sobre a caracterização da obra de Couto Viana.
Esta antologia inicia-se com o primeiro livro do autor, O Avestruz Lírico (1948). Um avestruz, embora lírico, foi a imagem que Couto Viana encontrou para estabelecer a sua voz de poeta: cantante mas privada, provavelmente não com a cabeça num buraco, mas em prolongamento de uma tradição presencista umbilical de recusa da poesia empenhada que era, por essa altura, para muitos, um imperativo ético e literário: «Podem pedir-me, em vão, / Poemas sociais, / Amor de irmão pra irmão / E outras coisas mais: / Falo de mim – só falo / Daquilo que conheço. / O resto… calo / E esqueço.» Veremos que a poesia de Couto Viana, instigada primeiro por um pressentimento de crise e depois por um sentimento de catástrofe, mudará sensivelmente a partir de meados da década de 60; mas nesta primeira fase o poema é apenas uma privilegiada mas quase banal ocasião de alegria, sem solidariedades com o mundo. O tom do livro é, aliás, de recolhimento intimista, e de biografismo complacente, com o Menino, mimado e doente, a fazer dos poemas brinquedos que o ajudam a ultrapassar a precoce inadequação ao mundo: «Avestruz: / O sarcasmo de duas asas breves / (Ânsia frustrada de espaço e luz, / De coisas frágeis, líricas, leves); // Patas afeitas ao chão; / Voar? Até onde o pescoço dá. / Bicho sem classificação: / Nem cá, nem lá. // Isto sou. (Dói-me a ironia / – Pudor nem eu sei de quê.) / Daí a absurda fantasia / De me esconder na poesia, / Por crer que ninguém a lê.» O Menino é também Poeta, outra palavra que aparece grafada com maiúscula, como em Régio ou Torga, marca de uma extremada visão da grandeza do verbo e do verso. Há, nesta estreia, algumas ingenuidades, alguns poemetos minimais e frágeis, que fazem pensar no primeiro Lorca, mas também um autocomprazimento que deve alguma coisa ao Mário de Sá-Carneiro de «Caranguejola». E existe, sobretudo, o equilíbrio problemático entre idealismo e angústia, que marcará toda a poesia de Couto Viana. Esse veio sotto voce e biografista prossegue, anos mais tarde, num livro como O Coração e a Espada (1951), no qual vemos, como o título indica, uma mistura de exposição e de trabalho poético. A poesia é aqui essencial, e inextricável da vivência biográfica: assim se recorda o grupo da Távola Redonda e se faz uma variação sobre a famosa «Viagem a Pasárgada» de Manuel Bandeira, um poema com a virtualidade de podermos ler nele o que bem quisermos. Mas este é sobretudo um livro de uma tristeza devedora de António Nobre, claramente evocado no texto. No entanto, o ambiente de «vergonha, angústia e pranto» espelha uma condição agónica muito diferente da que encontramos em Nobre; entre a poesia e a morte existe uma categoria que não faz parte do mundo do autor de Só: o pecado. Não é por acaso que um poema se chama «Oração», ou que encontramos um prolongado tom de lamento e confissão: esta obra surge marcada por um sentido religioso mais profundo do que o habitual ritualismo que Couto Viana manifestamente prefere. Mas há aqui também a continuação de um intenso lirismo, com afloramentos de um erotismo tímido. Trata-se de uma obra como que de transição, que faz uma pausa, um exame de consciência, antes de prosseguir.
E que pausa, e que consciência, pois nesta antologia segue-se Relatório Secreto (1963), um dos mais importantes, e certamente o mais inquietante, dos livros de Couto Viana. Diria mesmo: um dos mais inquietantes da poesia portuguesa do século passado. São poemas de uma violência biográfica e expressiva que podemos aproximar da poesia confessional americana do pós-guerra, mas com esta fortíssima originalidade: nestes poemas mantém-se a força arrasadora de uma existência, de uma revelação, mas não o evento biográfico que lhes corresponde. Embora possamos encontrar pistas desse segredo, há certamente um pormenor – mas pormenor emocional – de relatório. É o livro duma crise, e prova uma vez mais que em literatura o vivido contamina necessariamente a linguagem. As recorrências vocabulares são esclarecedoras: saguão, barricada, medo, réu, grades, trevas, veneno, cativeiro. O escárnio tinge-se de pinceladas góticas, absurdas. O extraordinário poema «As Rapinas Rapaces» ilustra bem o tom: «Do cerne da calúnia, / As rapinas rapaces / Buscam a morte, o oiro, / Em lascivas caçadas. / Escorre-lhes das presas / O sangue, a amarga lágrima. / Teu fuzil, caçador, / Não as encontra n’alma: / Ocultam-se na terra, / No coração da carne! // Vibram rasteiro voo / As rapinas rapaces, / Nas caves inundadas / De fumo, álcool, escarro. / Na órbita das órbitas, / Roçam balofas asas; / Com duro bico imundo, / Picam luar e graça; / E devoram, com gula, / Meretriz e pederasta. // Na época do cio, / As rapinas rapaces / Aninham-se nos versos, / Espojam-se nas camas, / Toldam, em cada espelho, / As virgens e os rapazes, / Alarmam o silêncio / Das furtivas passadas / E exibem um lençol / De poluídas pragas! // P’lo tempo que não cessa, / As rapinas rapaces / Pairam sobre a cabeça / De crua divindade. / Nada as destrói. Existem / Como hóstia nos altares / E adornam-se de pomba / E cravam-se de farpas / E gemem e suplicam / E morrem e renascem. // Aviso de extermínio, / As rapinas rapaces / Apontam-se com pedras, / Lumes, lixos, espadas / Ou beijos repetidos / Ou águas perturbadas / Ou a mulher de azul / Ou o brinco de prata / Ou o aço do braço / E o cristal da garganta! // Quanto é impuro e atroz / As rapinas rapaces / Arrastam para o ninho / Onde me encontro e canto. / Meu lirismo se afoga / Em palavras…, palavras… / Atinjo a extrema forma / Destruo-me de imagens! / E mordo, com seis dedos, / O ventre da verdade!»
Ao negrume existencial alia-se uma linguagem em invenção, mas também em ruptura verbal, e podemos dizer que o desespero empurra o poeta para os limites do surrealismo, aqui visto não como um ludismo mas como um princípio desagregador, como no poema enganadoramente chamado «Apetite Nefelibata», um ponto alto de criação vocabular: «Hoje apetece pompa e beleza: / Finos veludos da cor do vinho, / Pavão no parque, gomil na mesa, / Uma espinela para um espinho. // Voltar ao tempo do alabastro, / Da caçoleta, do faldistório… / – Ser mais eu génio do que o de Castro / E mais de Castro que Alberto Osório. // Hoje apetece descer às salas / Com um piano de cauda longa; / Ter por trombeta, para abrir alas, / O grito d’aço de uma araponga. // Hoje apetece museu em casa / E um candelabro pra visitá-lo; / Em cada espádua ter uma asa / E em cada fuga ter um cavalo. // Hoje apetece beber veneno, / Com ventanias no reposteiro, / Servido em taça de loiro Reno / Por um sinistro, núbio copeiro. // Hoje apetece leão aos pés, / Punhal no sangue, sangue no grito; / Ser uma efígie de Ramsés / Todo em pirâmide, como o Egipto. // Hoje apetece livor de arcadas / De algum palácio gótico e vago, / Onde princesas despenteadas / Morram em cisne num mago lago. // Ou em Bizâncio, com não sei quem, / Ter um encontro crepuscular… / (Ai do poeta se apenas tem / A poesia para brincar!)» Mais do que nefelibata e brincado, este poema representa uma «crise de versos», um desespero vertido numa enumeração quase assustadora, e impressionantemente recheada de alusões. Em plena «crise de idade», o poeta está ao mesmo tempo sozinho e cercado. Até os espelhos são seus inimigos: «Há sombras escondidas nos espelhos». Relatório Secreto representa uma espécie de ultraconfessionalismo, que de tão íntimo extravasa o biográfico e se converte em retrato de dilaceramento espiritual. Como irá acontecer em livros futuros de Couto Viana, o escárnio é gémeo do sofrimento, talvez uma reminiscência crística: «O festim ficou em meio: / Veio a polícia a cavalo. / Meia-noite. Canta o galo. / ‘Não quer vir dar um passeio?’» É a miséria da sua condição que o poeta exprime deste modo, «soterrado imaginário» que se vê na contingência de dizer tudo e não contar nada. Paradoxo desta etapa decisiva, numa obra que sempre foi vogando entre a visão dura e triste, mas benigna, e o abandono espiritual, quase como Jesus no Calvário. No meio deste dilacerado cativeiro, existem curiosas aproximações a um erotismo mais violento, e verdadeiramente invulgar no conjunto desta obra. Esse erotismo, faz parte, aliás, de uma noção omnipresente de «verbo escuro» que domina a poesia de maturidade do autor.
Desde Desesperadamente Vigilante (1968) que a poesia de Couto Viana demonstrava um pessimismo histórico acentuado. Mas a queda do Estado Novo e o regime instaurado com o 25 de Abril de 1974 chocam o autor até ao silêncio. Assim se explica um breve hiato editorial, que termina em 1977 com Nado Nada, outro marco central e outra obra de crise. Mas onde Relatório Secreto dizia respeito a uma crise de ordem pessoal e íntima, neste livro é o estado da pátria despedaçada que Couto Viana regista, como se fosse o diário de guerra de um derrotado. Há mesmo um poema chamado «De Profundis», título que traduz bem a depressão quase bíblica deste livro invulgar na poesia portuguesa. A noção de derrota é aliás essencial, bem como a de catástrofe. A primeira diz respeito ao colapso de um Portugal – de uma ideia de Portugal, para ser mais exacto – ligada ao patriotismo heróico, aos valores «sãos», à continuidade histórica e à nação pluricontinental. O poeta vê, desolado, o regresso das caravelas, os aeroportos cheios, o Império que se desfaz. Cito o poema que dá título à colectânea: «Acabou-se o tempo da sombra modesta, / De ramo de rosas na jarra votiva. / Abriram-se em cravos os olhos da festa, / Bateram fuzis às portas da vida. // Acabou-se o tempo das vozes passivas, / Das pausas enchendo espaços de amor. / Rugiram rajadas de forças cativas, / Cravando nos muros punhadas de cor. // Acabou-se o tempo de olhar, sem além, / O dia que os dias somaram igual. / Vieram bandeiras. Com elas, alguém / Marcar um encontro, fazer um sinal. // Acabou-se o tempo do códice antigo / Dormindo entre os braços de austero cliente. / Rasgou-se a janela outrora postigo / Que dava prá lua de um céu decadente. // Acabou-se o tempo balido em rebanho, / Retouço nas margens de estrito redil. / Tiraram das arcas o próprio tamanho / Os raros herdeiros de um feudo viril. // Acabou-se o tempo da usura secreta, / Mercados de corpos na berma da estrada. / O tempo acabou-se. Mas nasce um poeta / Da terra queimada.» A derrota (pública) é assim vivida como catástrofe (privada). Couto Viana é um dos raros poetas que escreveu repetida e consistentemente sobre a Revolução vista do lado dos vencidos, o que, evidentemente, contribuiu para o seu afastamento do cânone. Na poesia de Couto Viana existia uma realidade hipertrofiada – Portugal – que a Revolução arrasta dos ouropéis da glória para a lama das ruas. Muitos foram os poetas que aderiram aos nacionalismos, autoritarismos e fascismos de entre as guerras, como Pound, Yeats ou uma plêiade de espanhóis (que Couto Viana particularmente ama), mas em épocas mais propícias a esse empenhamento. Entre nós, houve poucos poetas fascistas, e poucos os que publicaram jeremiadas contra a Revolução, ou contra a democracia (imaginemos, por simplicidade instrumental, que são uma e a mesma coisa). Em Portugal, os poetas nacionalistas de finais do salazarismo tocaram a rebate, prevendo o impasse e a débâcle. Poetas muito diferentes entre si, como Goulart Nogueira, José Valle de Figueiredo, e sobretudo Rodrigo Emílio. Mas todos se remeteram ao silêncio ou ao gueto. Couto Viana foi o único que se manteve activo e publicamente poeta depois do 25 de Abril, o que aliás contraria o afundamento definitivo de que os seus versos, em certo momento, fazem eco.
Nado Nada é o livro de quem acorda, uma manhã, e descobre que não tem país. «Acabou-se», diz o poeta, numa expressão que releva ao mesmo tempo do choque e da inevitabilidade. O «Portugal antigo», o Portugal histórico, nasce desfeito. E transformado em quê? Em «destroços», «ódios», «vinganças», em «rancor» e «desprezo», na «cova», em «cadáveres». Mais do que realidades concretas – na metrópole não houve, em sentido literal, «covas» e «cadáveres» -, estamos perante projecções catastrofistas, de medo colectivo, e porventura também pessoal, de uma escalada revanchista. Mas há outras formas mais subtis de sofrimento. A Revolução dá-se em Abril, e toma como símbolo os cravos, e estas duas palavras, «cravos» e «Abril», nunca mais serão as mesmas para Couto Viana, fazem parte de uma espécie de teologia negativa que investiu em palavras poéticas o ideal revolucionário, o que o mortifica especialmente. Não só morreu a pátria, como o próprio sujeito se imagina fuzilado, acentuando sem margem para dúvida a sua condição de – uso a terminologia então reinante – «fascista», isto é, inimigo da «democracia socialista» (e mesmo da «democracia burguesa»). Há, por isso, a presença explícita do inimigo, não apenas no país metaforicamente reduzido a um «punho fechado» (símbolo também da redução geográfica) mas também na figuração da esquerda e sobretudo do comunismo, horizonte mais óbvio e aterrador para o poeta tradicionalista, nacionalista e católico. O «partido» que surge nos poemas é ao mesmo tempo uma metáfora e uma indicação política bem concreta. Daí toda a litania de «hunos» e «chacais», de figurações boschianas do mal. Assim nascem os belos «Sonetos Agudizantes», exemplares de um sofrimento político interiorizado. Vejamos o soneto VIII: «São carros de combate? São G-3 / Apontadas ao peito da memória? / Vitória dos escombros e da escória, / Uma epopeia, em pó, pisada aos pés. // Império que tão baixo se desfez, / Condenando no muro herói e glória, / Para o povo sentir sangrar na História / Vergonha de ser vivo e português. //O povo sofre? A massa rejubila: / Segue, cartaz e ódio, em fúria, em fila, / Enodoando as almas e as cidades. // Chamam futuro ao medo e à miséria, / Prendem a pátria na prisão da Ibéria / E entre o meu sonho e eu cravam as grades.» Note-se a nostalgia epopeica, a romantização do passado, o idealismo conceptual – a diferença entre «povo» e «massa» – e, finalmente, o toque de narcisismo com que o poema encerra, como se a Revolução fosse uma desfeita dirigida ao sujeito, arruinando-lhe o «sonho». Neste passo, o egotismo predominante nos primeiros livros de Couto Viana regressa de forma imprevista, no centro mesmo das convulsões históricas.
Vale a pena notar que este livro é também um livro de resistência. O poeta passa, numa madrugada, da situação para a oposição, ocupando agora, por ironia histórica, o lugar do inimigo. Para quem recusou o oposicionismo e a resistência, Couto Viana vê-se perante a inevitabilidade de não ser avestruz, e de assumir, enfim, a poesia social. E isso passa também por uma ética da resistência: se a Revolução marca o fim de um determinado tipo de fraternidade patriótica, uma solidariedade e um patriotismo novos surgem com renovado fulgor. Holderlin não tinha razão: em tempo de catástrofe – do que cada um entende por catástrofe – são precisos poetas. E por isso Couto Viana diz que da «terra queimada» nascerá a sua poesia. Longe de se sumir no chão, como faz um verme, o poeta faz de Nado Nada um paradoxal livro de recomeço. Com efeito, em «Para hoje», o poeta repete que «é preciso ficar aqui, entre os destroços», os «caídos», o «medo» e os «escombros», a que o poema opõe a «flor», o «pão», a «luz», e, finalmente, o «amanhã». Não se trata tanto de um poema contra-revolucionário, expectante face a um golpe que reponha a «ordem», mas sobretudo de uma espécie de conversão ou reconversão de um círculo restrito de que fazem parte o poeta e os seus amigos; esse «grupo» tem agora que trabalhar poeticamente o mundo, afastado que está o sistema que aprovava e que não regressará. Neste poema encontramos, provavelmente, as razões pelas quais Couto Viana continuou a ser poeta – embora poeta em terra estranha – enquanto outros autores abdicaram ou se enfeudaram a um inexistente e patético maquis.
O destino histórico da pátria e um particular sentimento subjectivo aparecem de novo, num outro contexto, nos livros sobre Macau: No Oriente do Oriente; Não Há Outra mais Leal; Até ao Longínquo China Navegou…; e Orientais. Couto Viana viveu em Macau entre 1986 e 1988, e essa sua vivência significou ao mesmo tempo encontro com um novo universo poético, lusitanismo desterrado e mítico e pressentimentos de mortalidade do Império face à «devolução» do território à República Popular da China. O fulgor epopeico está por toda a parte, com a presença física do Portugal secular e imperial testemunhada em casas e estátuas. Mas também está presente o fim de Portugal no território, como se diz em «Na Fortaleza do Monte», do livro No Oriente do Oriente, um poema resignado e inconformado: «Que mares apontam hoje os canhões de Bocarro, / Em cada fortaleza em defesa do porto? / Sonho inútil o sonho a que me agarro! / Quem vive no passado já está morto. // A parada, é um plácido jardim. / No palácio que foi, todo o tempo é previsto / Sem haver previsão para o tempo do fim. / É um miradoiro sobre as névoas, isto! // Nem o primeiro sino vai tocar a rebate. / E a jovem guarnição fantasiada / Forma para o turista e não para o combate. / Da estátua de Mesquita, destruíram a espada. // Quem esquece a missão e despreza o valor? / Quem, ante a perdição, o coração acalma? / Precisamos, aqui, a vontade maior / Para guardar de nós a nossa alma.» O quarto verso da primeira estrofe funciona como uma confissão mas também uma profissão de fé de toda a obra de Couto Viana, aliás exarada no nome da antologia da Ática, atrás referida. Mas, neste livro, existe também a presença literária de Portugal e do Português, sobretudo em Camões e Pessanha. Este é homenageado no seguinte poema: «Um aroma subtil. Um lume. Um fumo leve. / Um delicado ritual. / O impulso breve que se descreve / Quase indiscreto, quase sensual. // A música interior apenas murmurada. / A luz difusa. Trémulas imagens. / Ondas de lua. Exílio. A flor despetalada. / Viagens. // Onde singra o navio sombreado de tédio? / Oscila. O sorvedouro de uma esteira. /A súbita emoção. O clarim do assédio / Desenrola a bandeira. // O ópio envolve o sonho num afago. / Já tudo tão distante! Tão inútil! Tão vago!» Veja-se como poderíamos estar apenas perante um bom pastiche de um poema de Pessanha, com claras tonalidades musicais e orientais, mas como a referência à bandeira torna o texto numa meditação sobre o fim quase fantasmagórico de Macau português, como que envolto, para os Portugueses actuais, numa nuvem de ópio. Já em «Na Gruta de Camões», Couto Viana é «recebido» pelo espírito do nosso poeta por antonomásia, apenas para constatar como é fraudulenta a presença de «Camões» nesse espaço (no meio das glórias, há momentos assim de lucidez magoada na obra de Couto Viana). Macau é uma cidade em forma de memória: por exemplo nos seus cemitérios e ruínas. A forte presença – ao menos monumental – do catolicismo também impressiona o escritor, e é como se Macau fosse a última réstia de um Portugal decente: veja-se o poema que começa «Ó casas de / Macau, senhoriais!», um dos mais perfeitos de toda a obra de Couto Viana. Essa noção, talvez romantizada, leva a um curioso antropocentrismo invertido – o famoso «orientalismo» – que consiste numa visão sincera, quase devota, mas necessariamente estereotipada, dos orientais: simples, ancestrais, sensuais, às compras nos mercados e nas ruas, de riquexó. É uma interessante galeria de gentes e tipos, muito diferente do modo introspectivo e egotista mais natural no autor. No Oriente do Oriente funciona como um registo de viagem (de estada, melhor seria), mas claramente reminiscente de uma idealização do longínquo que tem tradição desde os escritos dos descobridores, e que é o reverso da ocasional demonização (aqui ausente). Seja como for, a observação das casas e das gentes, do rio, do farol e dos tufões, empresta ao livro uma clara tonalidade melancólica. Uma melancolia marcada pela pressentida vivência de uma morte: a física, mas sobretudo a civilizacional, que tudo, desde a natureza à História, prenuncia, mesmo se por entre o calor e a placidez. Não será por acaso que um leão recorda ao poeta a pantera de Rilke: força aprisionada, objecto filosófico, matéria de escrita.
Uma notória inflexão temática acontece com Café de Subúrbio (1991), provavelmente o melhor livro de Couto Viana das últimas décadas. Como atrás se disse, existe no poeta uma propensão (esporádica) para simplesmente aceitar o mundo em que vive, mesmo com nostalgias e incompreensões. Café de Subúrbio é essencial nesse percurso, uma vez que reduz a experiência vivida ao nível do quotidiano, e de um quotidiano particular: o café. Além disso, põe em cena uma personagem, o Velho, que representa uma excelente criação tardia, e, claro, um alter ego do poeta. Em rigor. o Velho está menos em cena do que a ver a cena, uma vez que os poemas são outras tantas observações, por vezes de indesmentível voyeurismo, da banalidade da existência. O café é um mostruário social privilegiado, tingido de uma tristeza que a sua condição de «subúrbio» sublinha. Desfilam pedintes, amantes e alguns personagens típicos mas excêntricos que Couto Viana nos dá na perfeição, como aquela mistura de filósofos, mendigos e imbecis que fazem dos cafés – e de alguns centros comerciais – a sua casa. O próprio Velho vive de certo modo no café, ou pelo menos tem aí as suas experiências humanas mais significativas, triste e solitário que é. Boa parte dessas experiências reside numa contemplação dos corpos jovens que enxameiam o café, e despertam nostalgias de desejo (as raparigas) e de virilidade (os rapazes). Exemplo da angústia sublimada ao idealismo lírico é este poema: «Dezasseis anos, talvez. / Vejo-a, no café, cada manhã,/ A folhear, atenta, um compêndio de inglês, / Com um perfume a Escola e a maçã. // Não me canso de a olhar. Às vezes, olha / (um velho!) num desvio de atenção, / e logo volta a folha, / enquanto molha o bolo no «galão». // Eu saio, com pesar, bebida a «bica». / Ela é a minha manhã, / Tão natural, tão clara… que ali fica. // – Que saudades da Escola! Que fome de maçã!» E num outro o poeta escreve «O café, ao fundo tem bilhares. / Iniciam-se ali, fechada a Escola, / Os moços escolares, / Na ciência subtil da carambola.» Esta «carambola» é ao mesmo tempo o companheirismo viril que Couto Viana sempre exaltou (na linha de autores como Drieu la Rochelle, por exemplo), e uma forma de exibicionismo sexual, para atrair as raparigas. O Velho observa atentamente os namoros entre adolescentes, os jogos de sedução, a carnalidade, as novas regras. À nostalgia e frustração soma-se uma espécie de vivência vicária: através dos rapazes, o Velho tem uma segunda juventude. Isso implica, muitas vezes, ser forçado a ultrapassar os seus próprios preconceitos, no que constitui um dos grandes focos de interesse desta obra. Assim, se existe todo um novo mundo de kispos e jeans (palavras ainda escritas com um certo enfado), de discotecas e sexualidade fácil, de uma generalizada (e hiperbolizada) proliferação de «droga e violência», a observação directa torna as coisas necessariamente mais humanas. O punk, descomposto e ameaçador, é afinal um rapaz inofensivo que lê, rindo, BD. A mesma compreensão se estende a outras gerações: assim a velha pega, que tem uma banca de jornais onde abunda a pornografia, espera que o neto volte da catequese para o interrogar comovidamente sobre matérias devotas.
Por outro lado, existe também todo um mundo que terminou, e suas personagens, como o engraxador, figura démodé, e o empregado velho e solene, alvo de troça. O próprio Velho é, etária e esteticamente, ultrapassado: «Choram para o chão os guarda-chuvas. / Chove e faz frio. O café está cheio. / Lento, descalço as luvas, / Pego num livro e leio. // É um livro de antiquada poesia: / Uns versos démodés, de um dandismo epocal, / Certa melancolia / E um satanismo gris de Flores do Mal. // (Café parisiense. Século XIX. / O absinto e a lavallière. / Lá fora, como agora, chove, chove…. / Ai, com que sugestões a inspiração me fere!) // Jovem, alguém, na mesa ao lado, / Espia-me a leitura, num sorriso de dó. / E fecho o livro, desencantado, / Com os olhos e os dedos já manchados de pó.» Existe, na escolha do café e da anotação urbana, ecos de Baudelaire e de Cesário, mas o café funciona ainda como tábua de salvação e de contacto humano: «O café bebe leite, coca-cola / E sumos de laranja e de limão. / A adolescência, quando sai da Escola, / Inva-de-o de alegria e confusão. // Eu, com a minha idade e uma cerveja, / Escondo-me nas folhas do jornal, / Pra que ninguém me veja / Sem me achar natural. //E sei que que já por dentro também envelheci. / E tudo quanto me destrói, agora, / É o desejo de ficar aqui, / Envergonhado de não ir embora.» Nestes poemas há, pois, toda uma dinâmica de exaltação e vazio, mas sobretudo uma variedade caótica e fascinante: os desconhecidos, os flirts, o fumo, a má-língua, o futebol, o cão que se escapa. E há uma melancolia, que no final se concretiza com o fecho do café, para dar talvez lugar a um «snack-bar», um «banco», um «supermercado». Se o Velho se queixava de que tinham desaparecido os cafés antigos, com tampo de mármore, onde se escrevia e pousava o chapéu, vemos, no final, como mesmo o novo é precário e rapidamente substituído pelo novíssimo. Em Café de Subúrbio há desamparo mas também coragem, e o poeta, reduzido ao rosário dos dias, percebe que os altos ideais terminaram, e que «imperial» é apenas uma cerveja a copo. Nos seus últimos livros, Couto Viana permite-se recolher um bom número de poemas de circunstância (alguns bastante menores), por vezes numa aproximação à figura do Poeta Laureado inglês, compondo versos para baptizados reais (embora com o pathos acrescido de não haver monarquia). Em colectâneas como Prefiro Pátria às Rosas (1998) recrudesce mesmo um sentimento patriótico exacerbado, como fica patente nessa negação do verso de Ricardo Reis. Isso é evidente na antologia Sou Quem Fui, com resultados duvidosos. Melhor é um regresso, já claramente mais trágico do que cómico, a um certo egotismo, que se consubstancia por exemplo em O Velho de Novo, o inédito que dá título a este volume. Ostensivamente, há uma remissão para Café de Subúrbio, onde o Velho é personagem central. Aqui se reflecte a constante preocupação de Couto Viana com o envelhecimento e a velhice, normal num poeta que celebrou oitenta anos. Aliás, é curioso pensar no trânsito demasiado trágico que há nesta poesia entre o Menino e o Velho, como se a maturidade – representada, por exemplo, em Relatório Secreto – fosse o período mais breve de uma vida. Mas o título indicia ainda uma insistência vitalista, que se expressa no «de novo» de quem ainda não desistiu. Neste livro, os poemas são efemérides (a Távola Redonda, de novo), cartas (a Garrett, mestre da língua), homenagens (a Cesário, Nobre, Sebastião da Gama), despedidas (o poema sobre o último Natal, que faz claramente eco do de David Mourão-Ferreira, fraterno amigo de quem também se despede) e ainda um conjunto de poemas patrióticos (sobre o Gama, Macau e Timor), menos celebrativos do que indignados com o esquecimento e a «traição». A escrita é ao mesmo tempo um traço de união ao passado, um fantasma, um vírus, uma hipótese: «Aquele pássaro inquieto e inquietador / Que ia poisar-me na mão aberta / E me escrevia juventude e amor / Na minha letra desenhada e certa, // Voou, há quanto tempo, do meu céu. / Deixou-me algumas penas. Mas nenhuma / Sabe traçar aquele que sou eu, / Oculto, agora, em solidão e bruma. // Com que saudades lembro as suas asas, / Palpitantes, no alor da Primavera, / Sobre o meu coração, voando, rasas, / A fremir e a arfar; espera! Espera! // A esperar, afinal, este final? / Porque não findas, poeta, quando finda / O voo desse pássaro fatal / E, já sem nada seres, vens escrever-te ainda?» Reaparece também um forte sentimento religioso, cíclico mas bissexto na obra de Couto Viana, embora natural num homem de idade avançada. Aqui, assume a forma de um lamento mas também de uma entrega nas mãos de Deus que tudo criou e que tudo destrói. Mas essa religiosidade não impede, agora como noutros livros, um certo desamparo sem remição metafísica, a mesma que marcou a perda da infância ou a perda de um país. Couto Viana está ciente não apenas da precaridade da sua (e da nossa) vida, mas sobretudo de um ancestral idealismo incurável, que mesmo no fim não renega: «Em cada cavalo o vulto de um Rei. / Passa a cavalgada. Já passou. Passei.» A auto-ilusão anda aqui de mão dada com uma vaga auto-ironia, visto que este sebastianismo deve ser lido em chave patética, como grande parte dos poemas do Couto Viana da velhice. O Velho de Novo não é a chave de uma obra, mas acrescenta-lhe uma tardia ogiva.
António Manuel Couto Viana escreveu que a melhor maneira de homenagear um poeta é decorarmos os seus versos. Já não seria preciso pedir tanto: apenas que esta obra, clássica e pessoalíssima, fosse lida, sem os preconceitos que tornam por vezes a literatura em matéria infame. E lida com o reconhecimento de que esta poética, que teve sempre de se debater com a mudança e a resistência à mudança, é um recanto lírico importante na poesia portuguesa contemporânea. Lirismo não tanto de avestruz mas de melro, de águia real, e, finalmente, de cotovia.
PEDRO MEXIA
Excertos
O AVESTRUZ LÍRICO
Avestruz:
o sarcasmo de duas asas breves
(Ânsia frustrada de espaço e luz
De coisas frágeis,líricas, leves);
Patas afeitas ao chão;
Voar? Até onde o pescoço dá.
Bicho sem classificação:
Nem cá, nem lá.
Isto sou. (Dói-me a ironia
– Pudor nem eu sei de quê.)
Daí a absurda fantasia
De me esconder na poesia,
Por crer que ninguém a lê.
in O Avestruz Lírico
ORAÇÃO
Ouvi a Tua voz – que Te buscasse,
Que eras vida e caminho ardente e santo.
Aqui me tens, Senhor, beijando-Te na face,
Mordido de vergonha, angústia e pranto.
Cruz, lança, espinhos, pregos, fel, vinagre,
Não são adereços para um corpo humano.
Faze em mim, meu Senhor, o Teu milagre:
Sofrer, morrer e ressurgir em cada ano.
Perdoa à minha carne o desejar sem norte.
Porque vivo no mundo e sou pecado.
E recebe-me puro, quando a morte
Me levar para Teu lado.
(Um Cristo de perdão,
Sereno como é fria a madrugada,
Veio cravar-me, por amor, no coração,
Uma nova espada.)
in O Coração e a Espada
RAPINAS RAPACES
Do cerne da calúnia,
As rapinas rapaces
Buscam a morte, o oiro,
Em lascivas caçadas.
Escorre-lhes das presas
O sangue, a amarga lágrima.
Teu fuzil, caçador,
Não as encontra n’alma:
Ocultam-se na terra,
No coração da carne!
Vibram rasteiro voo
As rapinas rapaces,
Nas caves inundadas
De fumo, álcool, escarro.
Na órbita das órbitas,
Roçam balofas asas;
Com duro bico imundo,
Picam luar e graça;
E devoram, com gula,
Meretriz e pederasta.
Na época do cio,
As rapinas rapaces
Aninham-se nos versos,
Espojam-se nas camas,
Toldam, em cada espelho,
As virgens e os rapazes,
Alarmam o silêncio
Das furtivas passadas
E exibem um lençol
De poluídas pragas!
Pelo tempo que não cessa,
As rapinas rapaces
Pairam sobre a cabeça
De crua divindade.
Nada as destrói. Existem
Como hóstia nos altares
E adornam-se de pomba
E cravam-se de farpas
E gemem e suplicam
E morrem e renascem.
Aviso de extermínio,
As rapinas rapaces
Apontam-se com pedras,
Lumes, lixos, espadas
Ou beijos repetidos
Ou águas perturbadas
Ou a mulher de azul
Ou o brinco de prata
Ou o aço do braço
E o cristal da garganta!
Quanto é impuro e atroz
As rapinas rapaces
Arrastam para o ninho
Onde me encontro e canto.
Meu lirismo se afoga
Em palavras…, palavras…
Atinjo a extrema forma
Destruo-me de imagens!
E mordo, com seis dedos,
O ventre da verdade!
in Relatório Secreto
PORTUGAL
Este mendigo, outrora, era um menino d’oiro,
Teve um Império seu, mas deixou-se roubar.
Hoje, não sabe já se é castelhano ou moiro
E vai às praias ver se ainda lhe resta o mar!
in Nado Nada
3 poetas em Macau
Camões
“Em que ano subi esta colina,
Repousei nesta gruta e respirei
brandas auras? Da pátria e do meu rei,
Aqui, sublime, sublimei a sina?
Que fama do meu vulto peregrina
Na voz destas paragens, e da lei
Da morte me liberta? Onde enlacei
A amizade do Jau e o amor de Dina?
Deixei sinais na areia, no arvoredo?
Quem me ocultou de mim como um segredo?
– Até ao longínquo China nevegou…
Aqui cheguei? Daqui parti? E quando?
Quem salvou do naufrágio miserando
Aquele que não sei se fui, mas sou?”
in No Oriente do Oriente
1
O café bebe leite, coca-cola
E sumos de laranja e de limão.
A adolescência, quando sai da Escola,
Invade-o de alegria e confusão.
Eu, com a minha idade e uma cerveja,
Escondo-me nas folhas do jornal,
Pra que ninguém me veja
Se me achar natural.
E sei que já por dentro também envelheci.
E tudo quanto me destrói, agora,
E o desejo de ficar aqui,
Envergonhado de não ir embora.
in Café de Subúrbio
ARRÁBIDA
Em memória de Sabastião da Gama
Ó Arrábida, ó ermo de Agostinho,
Mãe de Sebastião:
Benzi, com água azul do teu Portinho
O meu devoto coração!
O amor divino veio fazer ninho
No teu seio, gerando a inspiração
Que vergou os joelhos de Agostinho
E santificou Sebastião.
E o meu coração vai, no teu caminho,
A rezar à Poesia, com unção,
Os versos de Agostinho
E de Sebastião.
(17-08-2001)
in O Velho de Novo
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