Prefácio
A obra é iniciada com uma quadra dedicada à cidade:
Ó Viana, ó meu país,
Ó terrinha bem amada,
Se o Senhor voltara ao mundo,
Não qiusera outra morada!
Foram aqui incluídos alguns textos críticos que dão o seu contributo para a melhor compreensão e avaliação da obra, muito embora surjam somente no final do livro:
A Luta (Lisboa) de 10 de Outubro de 1922
«…como bom português, é aos amores que pede inspiração. E propositadamente dizemos – amores – no plural, porque o autor não suspira liricamente endeixas junto de quem lhe tivesse ferido o coração. Não se trata de paixões, mas daquele amor à moda pagã que nasce e morre entre dois amplexos.
Devemos dizer que o faz com galhardia, e muitas vezes com graça, podendo louvar-se em muitos dos seus versos uma espontaneidade e singeleza apreciáveis. O leitor reconhecerá essas qualidades na poesia (…) intitulada A Chinela (1) (…)»
Voz Republicana (Viana do Castelo) de 21 de Outubro de 1922
«Extraímos (…) das Paisanas, o livro de versos recém-editado nesta cidade, a poesia a que o seu Autor pôs aquele sugestivo título Ó Tempora (1). Ao efectuá-lo, não devemos deixar de explicar que nos influencia na escolha feita o acentuado sabor local, paisano (…) daqueles setissílabos, para nós dos de maior melodia, não obliterando as estrofes tão rítmicas da Tricana (1), essa outra composição em que o Poeta logrou merecido sucesso, a ponto de serem decoradas aquando da primitiva publicação há anos num jornal desta cidade, em que se estiliza e perpetua o tipo da interessante e sedutora filha do povo de Viana.
Nesse quadro do Ó Tempora, Ernesto Sardinha encontrou a fórmula (graças à expressão delicada, à rima, à síntese e ao amargo humorismo) para concretizar este contraste, tão vianês, entre a grácil tricaninha de outrora e a mãe de família de hoje, nem sempre vivendo com o desafogo que lhe permita conservar a linha da mocidade. E já, quando encontramos alguma destas nas ruas da cidade, e nos lembramos das galas e frescor desaparecidos – as palavras ou o comentário, que nos acode instintivamente, é o estribilho «Ó loira e esbelta Maria!…»
Voz Republicana (Viana do Castelo) de 4 de Novembro de 1922
«…abre-se o livro e… o que é que se topa?
Topa-se (…) e deixando agora tudo o mais (…) a riquíssima, a soberba maravilha – Apartamento (1) – quinze estâncias esplendentes, todas de borbolante inspiração, de eloquência nativa, sem a escorrência nova-rica de enjoalhados tropos farfalhantes; não, – tudo palavras do natural falar, aquelas palavras que, de velho instinto, já nos conhecem o caminho da garganta quando lá vão ter os soluços das grandes dores (…) No Apartamento brotam as imagens em tropel como nos prantos dos rudes; e, sendo poderosíssimas e de entalhe profundo, são todavia de velho corte e sabor tão português, tão nativamente português!
Eu vinha desvairado, enlouquecido,
Daquele golpe. Mal podia andar;
Porque o meu coração tinha morrido,
E os mortos são pesados de levar.
Mas urge transcrever mais, documentar mais, e ver-se-há se a admirável composição não revela um formidável temperamento de poeta nêsse rapaz novo, ainda de nome obscuro: (1)
(…)
Oh, decerto, decerto é preciso subir até aos cimos mais oxigenados da literatura portuguesa, ir até aos passos mais inspirados da Vida, de João de Deus, para se encontrar lirismo tão seivoso como o do Apartamenro.
Até a técnica do verso, que noutras composições do livro deixa a desejar, é aqui qasi sempre magnífica: os versos arfam, estacam amiúde, não vão olimpicamente no passo igual e sereno do Comedimento; vão humanamente e miseravelmente aos arquejos, – harmónicos com os solavancos dum coração em transes. E é de notar – pois não é? – que o poeta espontaneamente, num transparente «sem querer» – e só porque tem a alma do bardo português – acaba o breve e forta drama… – como?
Morta (ou como morta) para o enamorado, a «perdida noiva», o alto e espedaçado chorar de despedida amaina enfim. E a voz deplorante, mudada a clave, varia de tom (…) para um sussurro místico, rogando bênçãos.- É que logo ali nas estâncias finais, dulcíssimas (Sejas tu mais feliz do que ninguém! Teus filhos sejam lindos como a mãe!) começa o culto saudosista, não bem Àquela que se perdeu, mas à sua sombra, ao vulto «doce-amargo», a que o enamorado se aferra para sempre, no viver e fremir subjectivo – como é próprio da incomparável ternura portuguesa; como quando Camões, no século XVI, rezava: «Descansa lá no céu eternamente, e viva eu cá na terra sempre triste!…»; e como quando João de Deus, no século passado, suspirava: «Não sei se me voou, se ma levaram; nem saiba eu nunca…»
Creio que Apartamento é uma das mais belas poesias que se têm escrito; creio que vale, que excede, e de muito, todo o livro – e na sua admiração me demorei; e que possam soar para o poeta muitas horas em que o seu forte poder acorde todo, e entre todo em jogo, como na hora do Apartamento, posta em pé toda a vibratilidade de seus nervos de eleito, de altíssimo artista! Quem sabe? Então formaria de primores a sua obra, à sua altura, à altura a que mostrou poder subir…
Diz isto, então, as mais composições se me afiguram falhas absolutamente de mérito? Tudo é elativo… e é-se guloso; ora, aparecida uma raridade saborosa, porque se não hão-de pedir mais a quem, sendo capaz, tem o dever de no-las dar?
(…)
Ora em muitas das demais peças poéticas, posto que haja lá por vezes uma leveza rendilhada de galanteria, por vezes num tom entre irónico e meiguiceiro, fluentíssimo e escorregante, que lembra como certas trovas de Augusto Gil, o trovar do povo – a verdade é que quási sempre a alma do poeta jaz, dorme (ou parece-o), enquanto a boca vai cantando fácil, só no extremo dos lábios, sem que a voz arranque do fundo e traga de lá acentos de comoção…que nos comovam.»
FERREIRA SOARES
Diário de Notícias (Lisboa) de 20 de Novembro de 1922
«… diz-nos ele, num humorístico prefácio, que as suas estâncias lhe parecem simples e naturais como a personalidade de quem as escreveu, a paisagem onde se enamoravam os seus olhos de criança, as moças que o inspiravam e o povo a que pertence.
Não é imodesto o juízo que Ernesto Sardinha forma dos seus versos, todos dignos de apreço e muitos de excepcional louvor. O poeta é um lírico, que sente o amor com todas as suas seduções e encantos, não nos flagelando com a dscrição de dores tétricas e imaginárias e comprazendo-se até em nos fazer sorrir com composições graciosas e cheias de meigas ironia. Tem as suas afinidades com alguns dos poetas de maior renome, o que não prejudica a sua individualidade. Ao lermoa a Tricana lembra-nos que João de Deus a poderia ter escrito, como ao encantarmo-nos com Verdade Velha nos parece que estamos a ler Augusto Gil. E nestas palavras vai o maior elogio que poderámos fazer ao poeta das Paisanas. Querem a prova de que não exageramos? Ouçam a composição intitulada Lugar Comum (1)
E esta quadra com que fecha a admirável poesia Apartamento:
E se algum dia eu te fiz chorar,
Fui causa de desgosto para ti,
Seja estéril a terra que eu pisar,
Maldita seja a hora em que nasci!
É simples e é belo, não é verdade?» ELCAY.
(1) Reproduzida em Excertos
Excertos
TRICANA
a Salvato Feijó
Que me importa a mim que diga
A má língua que tu fazes
Tolarias com rapazes,
Doidices de rapariga?…
Se és a mais linda tricana,
A mais vestida de graça,
A mais galante, que passa
Pelas ruas de Viana!
Que me dá que a ti tomasse
A má língua à sua conta?!…
Se é rosada a tua face,
E alegre o teu olhar
Como a aurora que desponta!
Se é ligeiro o teu andar,
O teu porte senhoril!
Se és de tal modo gentil,
— Para que me hei de importar?
Com o punho arremangado,
A ver-se a pele mimosa;
Com o cabelo ondeado;
Tão fresca, linda, viçosa!
Lenço no ombro caído,
Deixando ver (e eu que espreito
Curioso, embevecido)
A brancura do teu peito!
A chinela mal pousando,
Esbelta, viva, ligeira,
Num andar gracioso e brando!
Ver-te, Maria, formosa,
Tão linda, tão feiticeira,
Faz a vista venturosa!
Passas por mim apressada,
Dizes-me adeus sorridente;
Voa-me a alma embalada
Pela tua voz timbrada,
Pela harmonia que sente.
E eu, num absorto sonhar,
Fico ainda a recordar
A blusa nova de chita,
A saia branca, a chinela,
A meia cor de canela,
A tua face bonita.
Se és, Maria, tal encanto,
Formosa, lépida, viva,
Se o teu olhar me cativa,
Que me dá a mim portanto,
Que me importa a mim que diga
A má língua que tu fazes
Tolarias com rapazes,
Doidices de rapariga?!…
A CHINELA
a Duarte Solano
Vi-te há pedaço de botina airosa,
E francamente não te fica bem:
A bota é própria duma dama idosa,
Não tem a graça que a chinela tem.
Conquanto fosse de esmerado talhe,
Não gostei de te ver, porque a chinela,
Leve e humilde, a uma tricana dá-lhe
Um outro encanto que é segredo dela.
A bota traz o pé fechado à chave
E encobre a base esguia da mulher…
Por isso é própria duma dama grave,
Que já não tem quem a procure ver.
Não há que valha em graça e sedução
A tua chinelinha de verniz!
O meu olhar persegue-a, como o cão
Perdigueiro no rasto da perdiz…
Porque ao andar descobres o artelho
E da perna roliça um bocadinho…
(A perna tentadora, aquele joelho!)
Ainda não os vi, mas adivinho.
Falam de ti; granjeias ruim fama;
Perguntam donde vem tanta riqueza.
Deixa a botina para um pé de dama
E usa a chinelinha vianesa;
Sem a meia; acredita: teu pé nu,
Lácteo e leve, liso e diminuto,
É digno de mostrar-se, porque tu
Possuis um pé de imagem, impoluto.
E que o não fosse? Mas descansa, é.
(Às vezes tem-se cada ideia louca:
Podias ter um calo no teu pé,
E o calo ser a marca de uma boca.)
Dizes às vezes com ar de pena
Que eu não sou fôrma do teu pé. Pudera!
A fôrma do teu pé é uma açucena,
Quando muito serei folha d’ hera;
A folha d’ hera rastejante e escrava,
Não terá dó do seu destino cru?
Pois folha d’ hera a mim que me importava,
Se o muro onde estivesse, fosses tu…
Agora que usas botas à madama,
Não tornarei a ver o teu pezinho,
Nem cismarei, com o meu peito em chama,
No que ainda não vi, mas que adivinho…
APARTAMENTO
a José Couto Viana Ferreira
Depois daquela despedida crua,
«— Tudo acabou!» (Meu Deus, que despedida!)
Fiquei pregado ali em plena rua,
A pouco e pouco me fugia a vida.
Ia tremendo quando fui falar-te,
E entrecortada me saía a fala,
Nas convulsões dum peito que se parte,
No arquejar dum coração que estala.
Mal pude articular o que sentia,
Saíam-me as palavras em arquejos,
Meu coração entrava na agonia!
Porque não viste, Amor, o meu olhar?
— Os lábios foram feitos para beijos,
Os olhos é que são para falar.
Fiquei pregado ali, em plena rua,
Como se dera um passo e avançasse,
A alma me ficasse ao pé da tua,
A minha vida presa a ti ficasse.
Ergui os olhos p’rà varanda
Na esp’rança vaga de te ver sorrir;
Mas voltaras as costas. — Vamos, anda,
Tudo acabou, é tempo de partir!
Eu vinha desvairado, enlouquecido
Daquele golpe. Mal podia andar;
Porque o meu coração tinha morrido,
E os mortos são pesados de levar.
De mim te apartas. Deixas-me sozinho;
Fico num triste desamparo agora.
Perdido o guia, vou como um ceguinho,
Aos tropeções por essa vida fora.
Sobram mulher’s. Mas como tu, ó minha
Perdida noiva, aonde encontrarei?
Posso-as lá eu amar! O amor que tinha,
Foi para ti, sem mais nenhum fiquei.
Tu és a linda, a inigualada, a rara,
A ti curvara o seu joelho um rei;
Tu o ideal não és que eu formara,
Porque de ti o ideal é que eu formei.
De mim te apartas. Um p’ra cada lado:
Vais conhecer novos amores, vais
A outro dar o teu sorriso amado,
— E a outra eu sinto que amarei jamais.
Irás ser doutro! Se casares um dia,
(Que ideia horrível! Ver-te em alheios braços!
Eu sinto o sofrimento que teria,
Se o peito me arrancassem aos pedaços.)
Se um dia te casares, (que tortura!) —
Sejas tu mais feliz do que ninguém,
Tenham os teus filhos a maior ventura,
Teus filhos sejam lindos como a mãe.
Crê que não guardo o mínimo rancor,
Em mim encontras o amigo certo:
Morrer por ti, se alguém preciso fôr,
Por ti então todo o meu sangue verto.
E se algum dia eu te fiz chorar,
Fui causa de desgosto para ti,
Seja estéril a terra que eu pisar,
Maldita seja a hora em que nasci!
LUGAR COMUM
a Henrique Couto Viana
Partiste. Quis ver-te. Ias contente,
Como se fôra viagem de noivado,
Um sorriso a brincar no rosto amado,
Dizendo adeus com o lenço a toda a gente.
Mas para mim nem um olhar dos teus!
(Ah! visses meu olhar como era triste!)
E lá partiste
Sem aos meus olhos tu dizeres adeus.
Se o pensamento meu tens a seguir-te,
Para que havias tu de despedir-te?
Ó TEMPORA
a António Lima
Oh! que saudade, Maria,
Eu tive da mocidade,
Quando, inda há pouco, te via!
Tu, a tricana galante,
Com fama em toda a cidade,
Eu, o ardente aspirante!
Como vai longe e distante
O tempo da nossa idade!
Os versos, que eu te fazia!
Aquele amor agarrado!
Que saudades produzia!
Saudades!…
Como sentia,
Um pungir cavo e magoado
Dentro do meu coração,
Só de lembrar-me, Maria,
Dos tempos que já lá vão!
E hoje tudo mudado!
O teu marido é soldado
E eu — vejam lá! — capitão!
Ó loira e esbelta Maria,
A vida tem vários trilhos;
Ergue a uns, a outros rasa:
Pensei eu, quando te via;
Espiolhavas os teus filhos
Ao portal da tua casa.
Ó loira e esbelta Maria!
VIANA
a João de Alpuim de Agorreta e Sá Coutinho
Terra tão clara e tão linda,
De arrabaldes tão formosos,
Floridos, gratos, viçosos!
— Não conheço terra igual!
Como ela não vi ainda,
Nem na há em Portugal!
Raparigas de Viana
Maravilhas não serão;
Mas de seus olhos dimana,
Como um perfume rescende
A luz excelsa, que prende
As almas em devoção!
Mas têm no corpo beleza,
Gala, donaire, viveza,
Que espertam o coração!…
Por isso é terra de amores,
E para amores fadada.
(O exemplo vem de cima,
Porque Viana é amada
Pelos dois namoradores,
Que é o Mar, e que é o Lima…)
O Mar, eterno devasso,
Ardente, voluptuoso,
Dá-lhe abraço sobre abraço,
A rebramar, amoroso…
E o claro Lima brando,
Com melindroso carinho,
É um murmúrio, falando,
Beija-a de leve e mansinho.
Pretendida assim, Viana
(E que espanta, se é mulher?)
Dos dois amores se ufana,
Beija um, outro rival,
E a um e outro quer:
Ao Mar — o amor sensual,
E ao rio do Esquecimento,
Que é o amor sentimento…
Terra de amor e de encanto,
Há de ser bendita, enquanto
Houver olhos para ver
E corações para amar,
(Que é o mesmo que dizer
Corações para chorar…)
LENDA DO RIO LIMA
a Miguel de Alpuim de Agorreta
Ouço dizer que em épocas distantes
As legiões dos Cônsules vieram
À Lusitânia norte, e transpuseram
Dum rio as mansas águas murmurantes;
Que era tal o encanto das paisagens
E tépido, aprazível o ambiente,
Tão balsâmico o ar e recendente,
— A vida tão feliz nestas paragens,
Que ao longo dessas ribas solitárias,
Orladas de verdura e salgueirais,
Aqui estabeleceram arraiais
As peregrinas tropas legionárias.
Correram as calendas de fugida;
Há muito descansavam os peões;
Os cavalos pasciam ; às legiões
Nunca chegava o dia da partida.
Porque do rio as águas murmurantes,
No sossego das noites, ao luar,
Soltavam harmonias de encantar
Jamais do Tibre ao Douro ouvidas antes.
E tinha tal poder o seu acento,
Que de Roma se foram olvidando
As legiões remissas, e chamando
Ficou-se o rio, então, do Esquecimento.
A ÚLTIMA TROVA
a José Pereira Cyrne de Castro
Postos no bico da gola,
Com que o alvo peito encobres,
Os meus olhos são dois pobres
… ao portal, pedindo esmola.
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