Linhas de Leitura
1.
Também a Fátima Fui é um esforço de reflexão onde o eu poético se debruça sobre o percurso místico do mim, sobre as suas relações com o sagrado.
É um balanço de vida. Um in illo tempore.
2.
Ainda que não graficamente assinalados, há nesta colectânea três momentos distintos: uma introdução ( o 1º poema), um desenvolvimento (os 26 seguintes) e uma conclusão ( o último).
2.1.
Na Introdução, MESV faz a agnórise da ruptura: poderá, porventura, haver em nós parcela da divindade? Como poderemos dizer-nos criados à imagem e semelhança do divino? Nós pecadores? Nós que “voltamos/as costas/à senhora”? [1] Não! “Não o parece, agora.” (p.81)
Está dado o mote para o corpo da reflexão. O divino é um Traço Perdido que urge recuperar em tempos prostiuídos pelo consumismo e gratuito imediatismo.. Ir a Fátima, centro-altar do mundo, será, então, subir os degraus, rumo a Deus. Será trabalhar a paz interior para que se construa a paz com os outros.
Façamos pois o percurso com a autora.
2.2.
Subir ao divino só é possível através de uma catábase ao mim … que o eu fará no centro do mundo: Fátima. Urge ver para conhecer e ainda para desabafar, para falar de si (p.82). O Eu desce rumo ao mim em busca do Traço Perdido, da nossa marca divina. A catábase é um processo cognitivo. “O narrador do romance EM NOME DA TERRA, de Vergílio Ferreira, a dada altura diz para Mónica: « dentro de uma casa não se vê a casa e sair dela dá muito trabalho”.[2]Aqui o drama. Confusa, a peregrina regressará desta descida aos infernos órficos, de mãos vazias, como Orfeu. Por que não viu.[3] “Porquê, Senhora?”, se interroga. E a resposta dá-no-la no poema seguinte: porque não crê! (p.83) [4] E não crê porque Deus não quis ainda que ela acreditasse. Por isso está em Fátima. Para “em rogos, em querença/em teimosia” dispersar a névoa e poder, enfim , ver e aprender o Credo. “Não entender, não perguntar – e crer” é graça que pede, diariamente, à virgem (p.88) … até porque rezar é assomar a uma festa: “Rezo-as [as avé-marias], porque ao rezar assomo / a uma festa. E subo, subo como / no azul a nuvem tímida do pó…” (p.85)
Interessante é perceber que a subida ao altar de Fátima terá de ser precedida pela instrospecção, pelo exame de consciência. Que “antes da missa na capela” rezemos “em nós a nossa própria missa”(98). Tudo começa, então, em nós. Tudo. Os desfelizes infernizam. Os zangados insultam. Os alegres espargem sol. Ninguém irradia luzeiros que não cultive.Ninguém armazena amores que não induza.O melhor, mesmo, será postergar preguiças e “semear na alma, toda aberta, ramos // verdes de festa”(98)
Ora nesta catábase, ou nesta subida ao topo do mundo [5], MESV a) umas vezes reza[6], b) outras, apercebe-se que são inúmeras as fúrias que dificultam o caminhar ( há nela, como no mito clássico, cérberos vigilantes que intentam guardar, ciosos , os segredos dos deuses e a busca do sagrado é, assim, um percurso de via-sacra)[7], c) fala, ainda, da segurança e nos diz que o Homem não está totalmente só nesta caminhada [8]; d) ou, em alguns momentos, se confessa e nos confessa pela sua-nossa ingratidão para com deus. Se depois da chuva o chão espelha a nuvem como não o testemunhamos nós, humanos criados à sua imagem e semelhança? (96)
3.
E assim chegamos à conclusão, ao poema REMATE.
MESV foi a Fátima para ver. Para se ver. Como Narciso nas águas da fonte. Num acto de coragem, que “somente vemos aquilo para que olhamos. Ver é um acto voluntário”[9] que nos permite apreender mas também seriar e marcar distâncias.
Maria Emília desce aos seus mais recônditos escaninhos e entende que um dia ultrapassará os limites do hoje e Urano desposará nova e finalmente a terra. Um dia tudo será, definitivamente, passento de Deus. Mas só um dia.
Orfeu e Eurídice, uma vez separados não poderão voltar a reunir-se. Poderão tentá-lo. Deverão. Enquanto nisso acreditarem viverão. Não o encontrarão, todavia. A outra margem, a sombra do real, não se alcança. Se Narciso conseguisse apreender a imagem nas águas, seria um infinito Deus. Se Adão e Eva pudessem impunemente ter comido da Árvore da Vida, não seriam mais humanos. Teriam reconstruído a idade do ouro. Teriam restaurado o jardim dos nossos encantamentos.
O absoluto persegue-se. Não se encontra. Chegar à perfeição, à Ideia Suprema, ao óleo absoluto, à primeira Palavra, será chegar ao fim da linha, ao término do humano. À divindade! Que só nela, a autora nos garante, alcançaremos a paz quando um dia encontrarmos, definitivamente, Deus. Aí a incerteza será certeza. Se Deus é o TODO, a eterna felicidade, só na sua íntima contemplação o saborearemos. Que um bolo se aprecia degustando-o. Que um bolo nos enfastia quando dele, tão apenas, possuímos descrições.
“Quem está ao sol e fecha os olhos, / Começa a não saber o que é o Sol / E a pensar muitas coisas cheias de calor. / Mas abre os olhos e vê o Sol / E já não pode pensar em nada, / Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos / De todos os filósofos e de todos os poetas.” ( Alberto caeiro)
“ Se um dia ficar certa, (…) / então, Senhora, então, (…) / descansarei / em paz. “ (122)
(excerpto da apresentação feita pelo Dr José Luis Carvalhido da Ponte)
[1] São inúmeras as formas de tratamento utilizadas pela autora, para Maria. Assim, a Virgem é: Maria estrela, Maria-Mãe, Maria-Mãe e menina, Maria viva, Maria-mais-que-rainha, Mãe de Cristo, Mãe de olhar purinho e claro, voz de humildade, amparo do desamparo, Mulher Maior, Rainha da Ilha dos segredos, Virgem da Serra, Virgem dos vales sem serra, Nª. Srª : pastora, serrana, das pombas, das velas, dos lenços, dos altos tamanhos, da sombra das azinheiras, do sol, da chuva, de todos os mendigos de mercês, da gruta de Belém, de quantos aceitam serem pequenos, das noites frias, dos dias santos, da esperança.
[2] PONTE (p.30)
[3] Uma personagem de UM HOMEM PARADO NO INVERNO (Baptista Bastos) diz para Madalena: “ Tenho-te visto mas não te conheço. Agora, que te conheço, vou passar a ver-te”.
[4] “No fundo, o horizonte dos arquétipos e da repetição só pode ser ultrapassado impunemente se aderirmos a uma filosofia da liberdade que não exclui Deus. Aliás, foi o que se verificou quando o plano dos arquétipos foi pela primeira vez ultrapassado pelo cristianismo judaico, que introduziu uma nova categoria na experiência religiosa: a fé. Não devemos esquecer que se a fé de Abraão se define como tudo sendo possível para Deus, a fé do cristianismo implica que tudo é possível também para o homem. « Acreditem na fidelidade de Deus. Em verdade vos digo que alguém dirá a esta montanha: Ergue-te e lança-te ao mar … Se o homem não duvidar e acreditar que aquilo que diz se realizará, isso realizar-se-á. É por isso que vos digo: Tudo o que pedirdes rezando ser-vos-á concedido» (Marcos, XI, 22-24). A fé, neste contexto, como aliás em muitos outros, significa a emancipação absoluta de toda a espécie de «lei» natural e, por conseguinte, a maior liberdade que o homem pode imaginar: a de poder participar no próprio estatuto ontológico do Universo. Ela é, portanto, uma liberdade criadora por excelência.” ELIADE (1984)pp172/173.
[5] Há vários registos de ascensão: gente cheia de fé / que a pé / subiu dos vales à serra (89); Cova dos Cimos (102); etc……….. . Mas também de descida cf. P. 98
[6] pp. 97, 99, 102, 103, 105, 107, 113, 116)
[7] Vejamos algumas estações deste hodierno calvário: a nossa voz / é falsa e ruim (83); rezamos sem alma, desfolhando palavras sem sentido, sem saber rezar (pp.85,111,114); deixamo-nos iludir pela porta dos Eldorados (86); tem o meu terço contas / que as fadas fadaram mal e rezar desde criança o mesmo comprido terço, cansa (p.93);somos ingratos para com Deus (p.96) cantamos com hesitação (97); trazemos vazias as mãos e porque a fé nos abandonou estamos minguados no fervor (99); todos nós de longe vimos / carregando algum madeiro: / bem humano … bem mesquinho (102).
[8] Com efeito afiança ser “ voz corrente” que quem vai a Fátima “ encontra uma mesa posta / onde mata a sede às sedes / e a fome a todas as fomes; – /e, para as dúvidas todas, / a transparente / resposta” (86). Esta virgem de Fátima é a responsável por nos homens nem tudo ser noite pois “ Nossa Senhora / pastora / dos nossos pobres rebanhos…” visitou-os.
[9] BERGER (1982), p. 12
Excertos
TRAÇO PERDIDO
havemos nós, em nós, na realidade,
uma parcela real
da Divindade
que nos teria feito à Sua Imagem?
Nós – que pecamos.
Nós – que negamos.
Nós – que tomamos.
sozinhos sempre, afinal,
por um só nosso mau caminho
… com a rua torta por paisagem…
Nós que voltamos
as costas
às Senhora de mãos postas
nos ombros nossos
-Mãe de Cristo, que por mãe
no-la propõe também -,
sabendo ( se o sol descora,)
que sabe bem
quando uma mãe nos dá carinho…
nos dá ajuda … nos dá coragem!
… Havemos nós em nós, na realidade
uma parcela real da Divindade
que nos teria feito à Sua Imagem?
Não o parece, agora.
DESABAFO
Não entender, não perguntar – e crer:
graça que peço à Virgem dia a dia!
Sem me guindar à fresta da enxovia
imaginar, lá fora, o que há que ver,
Sem avançar um passo, numa via
sinuosa, às vezes, prosseguir; haver
calor da imagem vaga dum Poder
Maior na alma tão menos, e fria:
– graças que peço à Virgem, hora a hora.
Rezar palavras pobres, repetidas,
e repeti-las sem cansaço … embora
não as prolongue um Eco menos baço;
– ou varrê-las da mente, bem varridas:
graças que peço à Virgem … no cansaço.
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