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Um Fio de Música

Não se sabendo se é o som da água que evoca a música, se é esta que acorda aquela, nesta obra assistimos a um encontro, quase original, entre as águas (do mar, da chuva, da fonte, do pântano, do rio) e os vários andamentos musicais ( alegro vivace, adágio cantabile, pizzicato, retornello,…)…

… como se o fio de música fosse um fio de água, como se a água se transformasse em música, como se o inefável se materializasse, como se a matéria se evolasse.

E os vários estados de espírito do poeta vão sendo dedilhados, num intimismo ora lúgubre, ora terno, ora sarcástico…

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Prefácio

“Paralelamente a esta obsessiva e necessária busca de liberdade aliada ao referido saudosismo, descobrimos neste livro um novo trovador que encontra na natureza, e muito especialmente na água, o meio ideal para os seus desabafos. Nos poetas da antiga Galécia choravam as amigas perguntando às ondas do mar, às águas da fonte ou do rio, pelo seu amigo que se partira para o fossado e demorava já. Aqui «encontram-se os amantes na fonte onde queimam os sonhos a sonhar com brasas» e fazem-no sem que o sujeito poético se importe «que a bica da fonte/conte/os beijos» dados pois o que importa é tão só saber-se «ser já morta/a hora divinal em que bebias beijos,/com que a fonte,/matava/os teus desejos/de mulher/que em vez de viver,/sonhava…» (p.18). É a fonte-testemunha do encontro e da vontade que no futuro se repitam os sonhos doutrora, já realizados. É a fonte-vida, neste enorme e quase morto claustro de quotidiano(«ROMANZA»). É ainda a fonte-sonho quando «bate o luar em cheio no espelho adormecido da velha fonte abandonada e o espelho acorda radiante, …….. como se o tempo perdido fosse nada e a vida começasse, apenas, nesse instante.» (p.30)

José Luís Carvalhido da Ponte

Excertos

RETORNELLO…

Hoje devia de chover! Devia
cerrar-se o dia em água,
porque anda em mim uma tristeza imensa
– e o Sol é uma ironia,
é uma ofensa
à minha mágoa!…

Hoje devia de chover! E tanto
que houvesse cheia e o rio fosse um mar;
que a chuva fosse aquele imenso pranto
que eu devia chorar
– se pudesse chorar…

Hoje devia de chover! E a água
fugiu do céu, não sei por que razão!
Fugiu do céu, desapareceu, que eu trago-a
na nuvem que me tolda o olhar de mágoa
e cai no meu coração…

62. Julho,25

INTERMEZZO…

Por que será que a noite come a cor às rosas
vermelhas
e por que são elas teimosas
em se manter vermelhas,
mesmo no escuro, onde ninguém as vê?
Porquê?…

– É por que são vermelhas, simplesmente,
como a alegria,
como o sangue da gente;
é por que sabem que mentir não dura
e que, depois da noite mais escura,
há sempre um dia
– um dia de alegria
e de ternura-;
e que o Sol é quente e que a luz não mente
e vem sempre beijar quem a procura!…
63.Fev.º,26

PIZZICATO …

Caiu já hoje de manhã – fui vê-lo –
um ouriço do velho castanheiro:
Grande, robusto, autêntico novelo
de picos que o sol fez doirar
e amadurar
primeiro.

Peguei-lhe com cuidado,
que eles são agressivos,
rebarbativos e mordem com delícia o mais pintado…

Maduro. Já abria. Na floresta
de picos acerados
rasgava-se uma fresta
– um sorriso dos bem intencionados…

Lá dentro – curiosas, tímidas, estranhas –
espreitavam três castanhas.

Com calma e cuidado,
forcei o «sorriso»
do ouriço. E, então,
ele picou-me , mas fiquei vingado,
as castanhas saltaram de improviso
e rolaram no chão
– morenas,
brilhantes,
brunidas
e belas…
(Castanhas daquelas,
mesmo três, apenas,
compensam picadas de ouriços tratantes,
ciumentos delas
ali escondidas…)

Como ele as defendera, entre milhares de picos
– ciumento como um turco! – em seu harém fechado,
deitadas em coxins de bons veludos ricos,
na sombra dum serralho quente e alcatifado!…

Mas nem
os picos bravos,
nem os veludos
brunidos
que forravam o harém,
conseguiram prender as três enclausuradas!
– Não há violência, ou luxo, que retenha escravos!
Pode mantê-los mudos,
adormecidos,
mas quando a hora vem,
recobram os sentidos
e nem
as janelas gradeadas
os detêm!…
61. Out.º, 10

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