Prefácio
Estória de Cadmo e de Laureans
Em perseguição da vaca chegou à Beócia. E Cadmo aí fundou uma cidade. Para a santificar, quis sacrificar aos deuses a vaca diretriz. Procurou água para as indispensáveis abluções, mas um dragão lhe vedou o acesso à fonte. Cadmo matou o dragão, arrancou-lhe os dentes e semeou-os ao vento. Estes germinaram e deram origem a valentes guerreiros, que fundaram a linhagem da nobreza da novel cidade.
Façamos como o príncipe fenício e esparjamos os dados.Se assim o fizermos aos dentes, encontraremos Camões a identificá-los com os Portugueses, ” dentes de Cadmo desparzidos”.O dragão, por sua vez, figura no timbre das armas de Portugal. Cadmo, príncipe fenício, teria sido quem no Ocidente difundiu a escrita. A vaca que o guiou é Io, metamorfose da Europa, que assim escapou às fúrias do pai dos deuses, para vir a ser sacrificada, às portas de Tebas, por seu irmão, em honra de Minerva.
Baralhemo-los novamente. Cadmo é quem espalha, fixa a escrita, mas dispersa as palavras, o verbo e o discurso. Os inimigos da palavra livre são os deuses instituídos, que perseguem por libido, inveja, soberba e prepotência; são as regras instituídas que um escritor livre não pode senão violar, se quiser que algo fique intacto. Ora, esse algo sobrevivo só poderá ser a própria liberdade.
A liberdade é quem nos permite dizer o que sentimos, rompermos as fronteiras das proibições, as barreiras das convenções, o estereótipo do acomodatício bom comportamento. A liberdade permite-nos ler,numa sequência epistolar, ler uma história de vida como as Cartas ad Atticum de Cícero, por estas não terem a pretensão didáctica das Epístolas de Horácio ou de Sá de Miranda. Podemos mesmo construir um romance como A correspondência de Fradique Mendes ou a sua recente recriaçao por Agualusa na Nação Crioula.A liberdade de escrita epistolar encontramo-la também na correspondência de Lebasi, endereçada ao Laureans. A força dum animal pode residir nos dentes ou nas garras. Mas dentes que dão homens só os desses dragões míticos que apreciam 44 elementos do belo sexo em qualquer “dia-feira da semana” em Diagnósticos, e, por S. Jorge os ter vencido, o fizeram inepto para figurar no calendário litúrgico, mas apto a incarnar um orixá tão importante como Ogun. A liberdade é essa capacidade de romper bloqueios convencionais de escrita, de empregar plebeísmos mas zelar pela pureza da língua, de criticar os profissionais da TV, da Rádio, políticos nos seus discursos, escritores e outros responsáveis…que a infringem.
Baralhemos novamente os dados. Baralhemos mesmo os morfemas internos das palavras e construamos novos paralogismos. Iacta alea, o que nos aparece sobre a flanela verde da mesa, é uma sequência:tópicos, diagnósticos, (in)gratidão, questões-recorrentemente questões, numa incessante preocupação polémica e problematizadora-questões lexicais e idiomáticas, correspondência, proesia, longas odes e sintéticos haicus,epígrafes ± lapidares. E podemos concluir que, à força de tanto contestar-nervosa, incessante e mesmo atrabiliariamente-Laureans se tornou senhor dum discurso poético dotado já duma versatilidade que lhe permite oscilar entre a sátira (biliosa) e uma ternura de amor quase infantil, entre a poesia e a prosa, entre ambas e a “proesia” (para usar um paralogismo seu), entre o didáctico da ode e o sentencioso, o lírico e o dramático.
Laureans começou há anos a publicar contestando:fazendo de “louco” porque assinava com o nome civil, assestou o montante contra os moinhos das convenções e destruiu alguns gigantes. O primeiro foram os seus próprios bloqueios; depois, a apreciação do vulgo; depois ainda, algumas convenções, o que lhe permitiu granjear apreciáveis estimas (que parecem recíprocas): de Euclides Rios, Urbano Tavares Rodrigues, José Augusto Seabra, Amadeu Torres, José Rodrigues, Ana briz, José Saramago, Cândido Lima, Fina da Armada, Lídia Jorge, Maria Helena Vieira da Silva, Beate Klarsfeld, Jeannine Zana, etc.( E, se calhar, ainda há-de contar a de Couto Viana,de tanto que o critica). Assim, do esforço de um “louco”(e a loucura já S. Paulo a erigiu em sinal de inovação) nasceu Laureans: militante generoso das grandes causas, singelo e simples desvelador irritante e incómodo do bom senso, contradito e contraditor…
Aqui o temos. Negando o tempo, situando-se poeticamente para lá do futuro e para cá do microcosmo, semeando liberdades e delas fazendo nascer odes, sacrificando à poesia a sua própria alma, postado junto aos muros de Tebas com este livro na mão, verboso de mais e de menos, aguardando que a esfinge lhe ponha, também a ele, a questão fatal de vida ou de morte a que todos estamos condenados a ter de responder.
E Laureans muito tem escrito, contradito e contraditado, controverso, e a contra seu gosto, também elogiado. Tudo isto tem passado em busca da resposta exacta a uma pergunta cujo formulário, creio, nem ele conhece.
Viana do Castelo, 27 de Janeiro de 2005
Alberto A. Abreu
Outros
Badanas
O Laureans assume-se um adepto do Anarquismo no seu étimo, pela descrença nos pilares dominadores da Sociedade.
Principalmente por causa de muitos juízes e sobretudo da esmagadora maioria dos advogados e sua Ordem que considera facciosas.
Urbano T. Rodrigues escreve:”…muitos dos textos do Laureans estão à margem do politicamente correcto e das denominadas boas maneiras poéticas. São um grito de rebeldia, no sentido puro da palavra, com arrebatamentos eróticos, anárquicas sentenças e também jogos verbais…Sendo um guerrilheiro da Poesia, os seus poemas estão carregados como espingardas, de frases retumbantes e de versos como orações à Vida.” J. Augusto Seabra considerava-o uma reminiscência de Fernão Mendes Pinto, um Quixote contemporâneo e um …especial. E Amadeu Torres diz:”…é um viageiro inveterado! E o seu todo de homem sem fronteiras adquiriu-o experiencialmente como imigrante em trabalhos duros e como emissário convivente da solidariedade, justiça e fraternidade entre povos.”
J.M.G.S.
Contra capa
Como tudo no Universo é composto de gases,
cada um de nós é, em relação a uma estrela,
menos que um bafo intestinal.
(sai a 160 quilómetros por hora, segundo a ciência)
A coisa pior
é quando o pior da coisa alastra…
a toda a coisa o seu pior.
em Haiscais
Excertos
O SOLDADO, A MÃE E A GUERRA
Como outrora criança que embalaste,
Anseio afagos das tuas mãos, ao tom do teu canto.
Canto, não de musas nem de academias.
É canto heróico e santo!
Canto mesclado a gotas de orvalho
brotadas dos olhos e diluídas na boca em chama,
que chama bradando aos responsáveis o fim de estúpidas
lutas: guerras de interesses dos que nos comandam tão
negativamente!
Nesta luta insana almejo reouvir teu canto de ternura,
de amor e de emoção. E em forma de prece e de
saudação erguer minhas mãos.
E largar as armas em desobediência aos que me
ordenam matar meus irmãos.
28/09/2003,num monte em Caminha, a ouvir a Fantástica de Berlioz, dentro do caixote-de-lixo-móvel.
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