Excertos
1ªParte (1ª pessoa do singular)
Vou aqui sentada ao volante do Seat Leon TDi 1.9 que herdei do meu defunto marido: fez-se defunto quando faleceu aqui mesmo, no IC1, um pouco antes da Póvoa do Varzim.
(…)
Declaro que estou muito contente por terem construído o IC1 entre Viana do Castelo e o Porto; (…) O trajecto é muito arejado e marítimo, seguimos para o Porto sempre com o mar à nossa direita – ninguém dirá que se vai trabalhar. Quando chegamos a Leixões (nunca sei se é Leixões, se Matosinhos) é que o trânsito começa a embatucar, acaba-se o ludibrioso folheto turístico (…) Escuta vais aí sentado nesse banco… lembra-te,
FUI EU QUE TE INVENTEI
fui eu que dei o ser, não ser, não o ter – deste modo não passas de uma etérea presença – decidi-me inventar-te na altura exacta em que iniciei estas viagens -precisava que alguém com quem com quem desabafar, não é? -durante todos estes anos nunca me respondestes, nunca objectaste, menos ainda, respingaste ou questionaste, enfim, sempre me acompanhaste leda, indecifrável e queda, entrincheirada nessa invisibilidade sem palavras só que hoje vai ser diferente, estás a ouvir? Ponho-te interrogações e terás que retorquir… entendida?… vá criatura, fala!
-Agradeço-te.”
[…] Sei que estou atrasada, sei que tenho à minha espera um tal engenheiro Martens, pronto, agora que já estou dentro do Porto acabou-se-me o monólogo; nos passeios não me podem ver a falar sozinha e a esbracejar; vou terminar esta fala suavizadora dos meus tristes sentimentos, esta fala que tenta anestesiar os meus tumultuosos pensamentos roxos… não, não criatura, agora vais ficar sem pio, tenho que me concentrar na condução e daqui a pouco, já na empresa, ficarei absorta no trabalho, no anestesiante trabalho. Afinal a tua voz é uma má consciência, eu bem vi como pretendeste soltar as minhas mais íntimas culpas…
2ºParte (3º pessoa do singular)
Esta é uma viatura. Lenta, percorre a transversal, à substantiva avenida. A transversal à substantiva avenida tem apenas um sentido: o da substantiva avenida. A viatura fica parada uns momentos sob as tílias monumentais. Não se sabe a fazer o quê. É branca a viatura, adivinha-se que é branca. A sujidade que, durante todo o Verão sem chuvas, se lhe foi acumulando em consistências cada vez mais firmes, torna difícil o acto da adivinhação da cor. Agora avança um pouco mais.
[…]
Lá mais para a tarde será a sua viatura suja e que já não lhe parece triste. Ainda não é hoje que a mandará lavar. Depois será o IC1. Que tudo é o regresso definitivo no IC1.
Abre a porta do táxi. Antes de entrar, olha para cima, para as nuvens expectantes, em formação de escolta. Pacientes, aguardam. São elas que tocam o vento para norte.
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